A resolução fundamentada: uma insistência no erro?
A nossa primeira análise será pautada através de uma evolução histórica do artigo 128º do CPTA, para isso será analisado o artigo: na versão do CPTA 2015, do antprojeto da revisão de 2015, da posterior alteração de 2015 e por fim a versão atual (após a revisão de 2019). Para tratarmos isto de forma esquematizada e sintética será analisado numa tabela todas as modificações.
ARTIGO 128 do CPTA |
E suas várias versões |
Versão original de 2015 |
128/1: Quando seja requerida a suspensão da eficácia de um ato administrativo, a autoridade administrativa, recebido o duplicado do requerimento, não pode iniciar ou prosseguir a execução, salvo se, mediante resolução fundamentada, reconhecer, no prazo de 15 dias, que o diferimento da execução seria gravemente prejudicial para o interesse público |
Anteprojeto de 2015 |
128/1 Quando seja requerida a suspensão da eficácia de um ato administrativo, a entidade requerida, uma vez citada no âmbito do processo cautelar, não pode, salvo em estado de necessidade, iniciar ou prosseguir a execução, devendo impedir, com urgência, que os serviços competentes ou os beneficiários do ato procedam ou continuem a proceder à execução. 128/2: A entidade requerida e os beneficiários do ato podem requerer ao juiz cautelar o levantamento do efeito previsto no número anterior, alegando que o diferimento da execução do ato seria gravemente prejudicial para o interesse público ou gerador de consequências lesivas claramente desproporcionadas para outros interesses envolvidos, havendo lugar, na decisão, à aplicação do critério previsto no n.o 2 do artigo 120. |
Versão final 2015 |
Artigo inalterado. Continuou com a versão original de 2015 |
Versão atual (após reforma de 2019) |
128/1: Quando seja requerida a suspensão da eficácia de um ato administrativo, a entidade administrativa e os beneficiários do ato não podem, após a citação, iniciar ou prosseguir a execução, salvo se, mediante remessa ao tribunal de resolução fundamentada na pendência do processo cautelar, reconhecer que o diferimento da execução seria gravemente prejudicial para o interesse público |
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Ao comparar todas as modificações podemos, desde logo, dizer que é um artigo muito controverso e, com o devido respeito, na minha opinião, está longe de ser consagrada como a melhor versão, conforme irei densificar mais a frente.
Ora, de todas estas comparações podemos enunciar principalmente 5 pontos. Primeiramente, o anteprojeto de 2015 foi muito inovador: excluiu completamente a necessidade do prazo para requerer o levantamento do efeito da suspensão do automática do ato. Depois procedeu à exclusão da figura da resolução fundamentada; introduziu a figura dos beneficiários do ato, entendido, como quase de forma unanime na doutrina, referente aos contrainteressados; encerrou o debate doutrinário acerca do momento em que poderia ser feito o levantamento da suspensão automática do efeito do ato, nomeadamente, após a citação da entidade administrativa e dos contrainteressados. E, por fim, a exceção a proibição de executar o ato administrativo não seria mais tratada de forma incidental, num processo de declaração de ineficácia dos actos de execução indevida, mas antes no mesmo processo urgente, isto é na própria providencia cautelar.
No entanto, conforme mostrado na tabela, o legislador do DL 214-G/2015 não foi nada ambicioso e deixou inalterado o artigo em questão. O mesmo não se pode dizer do legislador de 2019, o qual realizou mudanças significas, mas insuficientes, no regime. Ora tenhamos em consideração os seguintes pontos: na esteira do anteprojeto de 2015, foi posto fim a querela doutrinária e identificou o momento da suspensão do efeito do acto como após a citação, para além disso não é só a citação da entidade administrativa em causa, mas também a dos beneficiários do ato entendido como os contrainteressados.
Contudo há de criticar três pontos da revisão de 2019. Nomeadamente, a supressão do prazo para proceder à resolução fundamentada; a manutenção de tal figura tão controvertida; e a impossibilidade direta de impugnação da resolução fundamentada, pelo particular, tendo antes de recorrer à declaração de ineficácia dos atos de execução, sendo a resolução fundamentada tratada de forma incidental. Ora, são esses últimos dois pontos principais que serão analisados aqui nesse post.
- Supressão do prazo de 15 dias: uma breve nota
Para o professor Mario Aroso de Almeida, tal exclusão do prazo preclusivo de 15 dias deve ser considerada de forma positiva. Isto porque não necessariamente tal urgência deva existir no momento inicial em que o ato é impugnado, podendo inclusive surgir mais tarde. Para além disso, tal prazo muitas vezes corroborava para uma resolução pouco ou nada fundamentada, tendo em consideração que era um prazo muito estreito para a entidade administrativa.
Ora, com o devido respeito pelo senhor Professor e sem desmerecer tais argumentos, não posso seguir tal raciocínio. Primeiro porque surge uma insegurança máxima na esfera do particular, visto que a administração pode, a todo o tempo, obviamente com o limite do trânsito em julgado da providência, elaborar uma resolução fundamentada e a partir desta, quando bem quiser, executar o ato outrora suspenso. Para além disso é dever da administração prosseguir com uma boa administração de forma célere e eficiente, segundo o artigo 5º do CPA , tais obrigações são inerentes à própria ideia de uma administração eficaz. Logo não é admissível que a aniquilação do prazo tenha se motivado pela incapacidade desta prosseguir o seu dever de forma correta e eficaz. Basta pensar na outra face da moeda, se o particular tem de cumprir e fundamentar determinados argumentos em prazos apertados, a administração tem todo o dever de fazer o mesmo. Acredito ainda que tal alteração possa ter “bebido nas águas” de uma administração-polícia e autoritária
Por fim, creio que o mais acertado seria manter o prazo preclusivo de 15 dias, mas era necessário identificar se este diz respeito ao prazo que a entidade pública tem para emitir a declaração, ou por outro lado, para proceder à sua junção aos autos
- A manutenção da Resolução fundamentada e a impossibilidade de impugnação direta: análise jurisprudencial e doutrinária
Ao chegar neste ponto do post, já sabemos que a resolução fundamentada é o documento pelo qual a administração formula o porquê que um determinado ato administrativo deva continuar a ser executado, e isto extingue os seus efeitos suspensivos sobre o mesmo, no âmbito de um contencioso cautelar. No entanto, tal documento deve estar devidamente justificado, explicado e mostrando as razões de grave interesse público para que isto ocorra.
Ora, o um grande ponto frágil de tal solução é que emerge na esfera do particular uma grave insegurança jurídica. Isto porque, como elucidado pelo Professor Jorge Pação e já mencionado aqui brevemente, a administração, depois de elaborar a resolução fundamentada, a qualquer momento, pode voltar a executar o ato administrativo. Contudo tal execução do ato administrativo poderá demorar 5 dias, 1 mês, 2 anos ou até mesmo 6 anos, ficando totalmente à descrição da entidade administrativa, e é só depois desta execução que o particular poderá contestar, não de forma direta, mas incidental a resolução fundamentada, através de um processo de declaração de ineficácia dos actos de execução. Isto porque há uma jurisprudência consolidada em que afirma a impossibilidade de analisar, de forma autónoma, a resolução fundamentada. Ou seja, no fundo, temos uma situação que a administração pode elaborar qualquer resolução (não) fundamentada e por fim à tutela do particular, quando na verdade estaríamos diante de uma execução indevida do ato administrativo, seja por falta de fundamentação seja por não existir nenhum interesse público gravemente ferido.
Ao analisar um leque vastos de acórdãos, é possível perceber ainda que a verificação dos atos de execução indevidos é muito dissonante consoante o tribunal em causa e não é feita de forma mais acertada. Para o TCA Sul processo 539/19.4BELSB-SI, foi considerada improcedente o incidente de declaração de ineficácia de atos de execução indevida, formulado pelo requerente, uma vez que a Administração redigiu um juízo genérico, mas conclusivo em que foi possível perceber o raciocínio lógico do caso. Com o máximo respeito pela decisão do tribunal, é totalmente questionável o juízo feito, não havia uma fundamentação coesa e vasta, mas, como elucidado pelo próprio tribunal, genérica! E para piorar, na minha opinião, a entidade administrativa não chegou a justificar um interesse público gravemente relevante, o que consubstancia claramente num ato de execução indevido. Outro caso chocante foi o processo 11202/14 do TCA Sul em que não havia nenhuma resolução fundamentada, o tribunal procedeu tão somente a uma verificação dos factos da mesma e estes só não podiam se contradizer, havendo uma demonstração de, quando muito, um silogismo, tal como no processo anterior. Para além disso, o acórdão do STA de 8 de junho de 2017 considera que existe um interesse público gravemente relevante num caso em que a imagem do MP poderia ficar prejudicada com a suspensão do ato administrativo. Ora nesse processo em questão não consigo discordar de todo da decisão, mas creio que a resolução fundamentada estava muito mais preocupada com uma questão mediática do que com o interesse público per si. Finalmente, é de saudar as boas decisões do TCA Norte, no proc. 00830/16.BEPRT-A, uma vez que houve um escrutínio de facto sobre a resolução fundamentada e esta foi considerada indevida, por não conter elementos bastantes capazes ou aptos para basear a decisão, concluindo ainda que não existia um interesse público gravemente necessário para por termo a suspensão e, a partida, toda a proibição de execução de um ato administrativo é prejudicial ao interesse público, mas temos sempre de respeitar o advérbio gravemente.
Visto todas as problemáticas inerentes às questões, é de concordar com o professor Mário Aroso de Almeida e com o professor Jorge Pação, a solução mais coerente e que melhor protege o particular é aquela que foi consagrada no anteprojeto de 2015. Seja pela eliminação de tal figura controvertida seja pela possibilidade de, no próprio procedimento cautelar, o juiz deste contencioso prévio decidir se há verdadeiramente uma necessidade de levantamento da suspensão de eficácia, caso haja um interesse público superior ou uma consequência claramente desproporcional. No entanto, como essa não foi a decisão do legislador de 2019, resta-nos esperar por uma reforma legislativa com uma maior preocupação nos traumas do Direito Administrativo e que diminua o papel da “administração-polícia” no artigo 128.
1 Em sentido contrário, o professor digo calado, ao entender que mesmo no anteprojeto a resolução fundamentada iria continuar a existir. Em Diogo Calado: O novo regime da suspensão de eficácia de acto administrativo no âmbito das providências cautelares impugnatórias, O Anteprojecto de Revisão do Código de Processo nos Tribunais Administrativos e do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais em debate; 2014, pg 209.
2 Em: Mafalda Serrasqueiro: Caminhos de reforço da tutela jurisdicional efetiva em sede cautelar: procurando alternativas à intervenção da administração através da emissão de resolução fundamentada nos processos de suspensão de eficácia do ato administrativo; Mario Aroso de Almeida: Principais alterações ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos introduzidas pela Lei n.o 118/2019, de 17 de setembro; Jorge Pação Breves Notas sobre os Regimes Especiais de Tutela Cautelar no Código de Procedimento Administrativo Revisto;
3 Vieira de Andrade A Justiça Administrativa – Lições, 14.a Ed., Coimbra, 2015, p. 307 vs Mario Aroso de Almeida em Manual de Processo Administrativo, 2º edição pg. 434. Identificado em: Jorge Pação Breves Notas sobre os Regimes Especiais de Tutela Cautelar no Código de Procedimento Administrativo Revisto pg. 115.
4 Atas da Conferência sobre Iniciativas Legislativas de Reforma do Processo Administrativo e Tributário: Eduardo Paz Ferreira; Vasco Pereira da Silva; Ana Paula Dourado; João Miranda; Nuno Cunha Rodrigues; Ana Gouveia Martins, pg 120; Mario Aroso de Almeida Principais alterações ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos introduzidas pela Lei n.o 118/2019, de 17 de setembro e em Manual de Processo Administrativo.
5 Mario Aroso de Almeida Principais alterações ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos introduzidas pela Lei n.o 118/2019, de 17 de setembro e em Manual de Processo Administrativo 3ª edição .
6 Tal raciocínio de administração autoritária tem inspiração nas aulas do Senhor Professor Vasco Pereira da Silva, consubstanciando, com toda a certeza, um dos traumas da Administração Pública.
7 Jorge Pação Breves Notas sobre os Regimes Especiais de Tutela Cautelar no Código de Procedimento Administrativo Revisto; pg 115. Embora o autor tenha feito tal consideração no anteprojeto de 2015.
8 Jorge Pação Breves Notas sobre os Regimes Especiais de Tutela Cautelar no Código de Procedimento Administrativo Revisto; pg 114
9 Um caso do TCA Sul, Processo: 539/19.4BELSB-S1, encontra-se em www.dgsi.pt
10 Acórdão: TCA Sul processo: 11202/14; Acórdão TCA Sul Processo: 539/19.4BELSB-SI; Acordão STA, processo: 050/17; Acordo TCA Sul, proc. 7052/10
11 Nas palavras da própria entidade administrativa: “não há como deixar de se considerar que a manutenção do Requerente em exercício de funções seria gravemente lesiva do interesse público (…) que afetam gravemente a imagem e o prestígio do Ministério Público e causam graves prejuízos aos cidadãos envolvidos nos processos pela não realização da justiça”
12 o qual mudou recentemente e bem a sua perspectiva sobre a solução de jure condito, chega-se a tal conclusão ao comparar a segunda aversão do manual do Sr. Professor com a terceira edição.
Giovanna Lacerda. Nº de aluno: 57582
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