Legitimidade Passiva no Processo Administrativo
Consagrada nos arts.9º[1] e 10º do Código de Processo dos Tribunais Administrativos (CPTA), a legitimidade é um pressuposto processual, que se traduz no facto de alguém ser sujeito da situação jurídica material, pelo que a ação em causa deve ser proposta por e contra os sujeitos da relação material controvertida[2].
Em concreto, quanto à legitimidade passiva, i.e.,
legitimidade da parte demandada, esta vem prevista no art.10º do CPTA –
analisemos o preceito.
O art.10º/1 tem duas partes: na primeira, podemos
referir que está consagrada a legitimidade passiva “comum”, nos termos da qual
é demandada a contraparte na relação material controvertida, tal como
configurada pelo autor. Como refere MÁRIO AROSO DE ALMEIDA[3], este critério tem
aplicabilidade residual, pois só ocorre nos casos cuja estrutura é semelhante à
do Processo Civil e que não são tão utilizados no processo administrativo; nos
termos da segunda parte do nº1 do artigo em apreço, é possível demandar “as
pessoas ou entidades titulares de interesses contrapostos aos do autor”.
O que distingue esta formulação da primeira é o facto
de, aqui, não se exigir a existência de uma relação jurídica material entre as
partes – o critério é o da existência de um interesse contraposto ao do autor.
Faz-se, portanto, nesta segunda parte, uma referência
aos chamados contrainteressados, que são sujeitos privados envolvidos no
litígio, por duas possíveis razões: ou porque têm os mesmos interesses que a Administração,
ou, por outro lado, porque a procedência da ação os pode afetar diretamente. Nestes
casos, estes sujeitos devem também ser demandados – o que dá lugar à existência
de um litisconsórcio necessário passivo, em que a ação é proposta contra a
entidade que praticou ou omitiu o ato, mas também os titulares de interesses
contrapostos aos do autor[4]. Exemplos deste litisconsórcio
encontramos nos arts.57º e 68º/2 do CPTA.
Já o art.10º/2 faz referência à legitimidade passiva
das entidades públicas, cuja regra geral é a de que “parte demandada é a pessoa
coletiva de direito público”, e não um ou o órgão que dela faça parte.
Para VASCO PEREIRA DA SILVA, demandar a pessoa
coletiva pública é um mau princípio, uma vez que esta, dada a complexidade
atual da Administração Pública, nomeadamente em relação ao seu funcionamento
desconcentrado e descentralizado, já não está em condições de funcionar como único
sujeito de imputação de condutas administrativas. Neste sentido, deve relativizar-se
a ideia da personalidade jurídica das entidades públicas e dar-se primazia à atuação
dos órgãos, fazendo das autoridades administrativas sujeitos funcionais de relações
jurídicas, dotados de capacidade jurídica própria[5].
O art.10º/2 contém, no entanto, uma exceção[6]: se estivermos perante uma
situação de ação ou omissão de órgãos integrados nos ministérios do Estado ou
secretarias regionais das Regiões Autónomas, quem é demandado não é o Estado
nem a Região Autónoma, mas sim, os respetivos ministérios ou secretarias
regionais que tenham praticado ou devessem ter praticado o ato em causa, através
dos seus órgãos.
Parece que com vista a um esclarecimento semelhante, o
legislador determinou no nº3 do art.10º que, estando em causa um ato ou omissão
de uma entidade administrativa independente, destituída de personalidade jurídica,
a respetiva ação deve ser intentada contra o Estado ou outra pessoa coletiva de
direito público a que essa entidade pertença. Existe, portanto, aqui, uma ficção.
Ainda neste âmbito, cumpre referir que o nº7 do
art.10º permite ao Ministério (ou secretaria geral[7]) que, nas hipóteses em que
haja cumulação de pedidos, tenha legitimidade passiva, não só em relação ao
pedido (principal) em que é demandado, mas também aos que com este forem cumulados.
O art.10º/4 faz a ressalva de que, ainda que a ação seja
proposta contra a “entidade” errada, isto é, proposta contra o órgão e não contra
a pessoa coletiva (ou ministério ou secretaria regional) como determina o nº2,
deve considerar-se a ação “regularmente proposta”. Nestas situações,
considera-se a pessoa coletiva, ministério ou secretaria regional citada
através do respetivo órgão (demandado), ao abrigo do disposto no nº5 (este número,
para VASCO PEREIRA DA SILVA, traduz o reconhecimento e a correção do “disparate”
quanto aos números 2 e 3). Esta solução é adotada também para os casos do nº3 e
pelo art.82º/2, que, por sua vez, concretiza o art.78º/3, respeitante aos
requisitos da petição inicial.
Conclui-se, assim, que quando o autor, na petição
inicial, demanda, por lapso, a contraparte errada, isto não prejudica a procedência
da ação, no que respeita à verificação dos pressupostos processuais, na medida
em que se considera a parte corretamente demanda.
À primeira vista, poder-se-ia pensar que o legislador
pretendeu excluir a hipótese da demanda de órgãos em Tribunal, determinando que
a legitimidade passiva existisse em relação à pessoa coletiva a que aquele
pertence. Mas esta “regra” é excecionada pelo nº8 do art.10º, que consagra os
casos em que se pode demandar órgãos diretamente – aqueles em que o litígio
ocorre entre órgãos da mesma pessoa coletiva. Esta solução tem em vista as
situações previstas no art.55º/1, d) e e), 1ªp., do CPTA[8]. São casos excecionais em
que o CPTA reconhece personalidade e capacidade judiciárias aos órgãos administrativos.
O art.10º/9 regula as ocasiões em que a parte
demandada é um (ou mais) particular ou concessionário. Esta distinção entre particular
e concessionário serve, na opinião de MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, a ideia de que “não
se tem em vista a situação dos particulares que sejam concessionários de bens,
serviços ou poderes públicos, podendo haver também processos dirigidos, a
título principal, contra particulares que não tenham o estatuto de concessionários”[9].
Este nº9 é importante para as situações consagradas
nos arts.37º/3, 51º/1 e 100º/2, em que os particulares (ou concessionários) podem
ser demandados através de impugnação de atos que tenham praticado ao abrigo de
normas de Direito Administrativo[10].
Por fim, o nº10 faz referência às situações de intervenção
de terceiros, em específico a intervenção provocada.
Concluindo, o art.10º, procura abranger todas as
situações possíveis relativamente ao pressuposto da legitimidade passiva, daí a
sua extensão, referindo que, no fundo, têm legitimidade passiva, conforme a ação,
as pessoas coletivas públicas, os ministérios, as secretarias regionais,
eventualmente órgãos de pessoas coletivas diretamente, o Estado (nº3) e os
particulares ou concessionários. Como refere VASCO PEREIRA DA SILVA, “a reforma
[legislativa] parece ter consagrado uma solução “clássica”, de preferência pela
pessoa coletiva como sujeito processual, o que não se afigura ter sido a
solução teoricamente mais adequada. Fê-lo, contudo, “de uma forma “aberta”,
através de normas que, na prática, permitem a intervenção processual das
autoridades responsáveis pelos comportamentos administrativos litigados, o que
possibilita olhar para o problema “de forma descomplexada”, considerando estas
como os efetivos sujeitos das relações de Contencioso Administrativo (mesmo que
se considere, em face das atuais opções legislativas, que agem em
“representação virtual” da pessoa coletiva)”[11].
Se o pressuposto em apreço não se verificar, estamos
perante uma exceção dilatória, que é de conhecimento oficioso e leva à absolvição
da instância, segundo o disposto no art.89º/2 e 4, e) do CPTA.
[1] Sem prejuízo
de outros preceitos, especiais relativamente a este art.9º, como os arts.55º,
57º, 68º, 73º e 77º-A.
[2] Como referiu
Vasco Pereira da Silva, em sede de aula teórica, trata-se de um “mecanismo que
serve para chamar ao processo os titulares da relação material controvertida”.
[3] AROSO DE
ALMEIDA, Mário, “Manual de Processo Administrativo”, Almedina, 3ª edição, 2017,
pp.247.
[4] Idem,
pp.255.
[5] PEREIRA
DA SILVA, Vasco, “O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise”, Almedina,
2ª edição, 2013, pp.278.
[6] Este artigo
concretiza o disposto no art.8º-A/3, sendo uma exceção ao art.8º-A/2.
[7] AROSO DE
ALMEIDA, Mário, “Manual de Processo Administrativo”, Almedina, 3ª
edição, 2017, pp.248.
[8] Idem,
pp.250.
[9] Idem,
pp.251.
[10] Idem.
[11] PEREIRA
DA SILVA, Vasco, “O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise”, Almedina,
2ª edição, 2013, pp.281 e 282.
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