A antiga teoria da via de facto e o novo âmbito de jurisdição administrativa e fiscal

 1. Introdução: O âmbito de jurisdição administrativa

A partir da revisão constitucional de 1989, o Contencioso Administrativo português sofre uma evolução significativa no plano constitucional, por força da qual se vem reconhecer o acesso à justiça administrativa como direito fundamental dos “administrados”, colocar no centro as relações jurídicas administrativas (caindo a antiga dependência da existência de uma decisão administrativa prévia como critério para o acesso aos tribunais administrativos e fiscais) e reconhecer aos tribunais administrativos plenos poderes, desde que na observância do princípio da separação de poderes.[1] Nos termos do art. 209.º/1/b CRP, os tribunais administrativos e fiscais são uma categoria obrigatória de tribunais, estabelecendo-se para com os tribunais judiciais (alínea a) do mesmo artigo), uma dualidade de jurisdições, tendo estes últimos uma competência residual face aos primeiros em razão da matéria (cf. art. 211.º/1 CRP, art. 64.º CPC e art. 40.º/1 LOSJ). Por isto mesmo, é necessário definir o âmbito de competência, em razão da matéria, dos tribunais administrativos e fiscais.

A propósito disto, o art. 212.º/3 CRP vem dispor que, como anteriormente indiciado, “compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”, entendimento explanado também no art. 1.º/1 ETAF. O art. 4.º ETAF, vem concretizar (pela positiva e pela negativa) esta ideia-chave, ao não adotar um critério estatutário que atribuísse competência aos tribunais administrativos para julgar as ações intentadas contra entidades públicas, mas sim um critério material que lhes reconhece competência para dirimir litígios cuja resolução dependa da aplicação do Direito Administrativo, independentemente da natureza jurídica dos sujeitos envolvidos.[2]

Não obstante este preceito, ao longo das suas alíneas, estabelecer algumas restrições e ampliações ao critério material, não deixa de haver um núcleo próprio da jurisdição administrativa e fiscal, respeitando-se a dualidade de jurisdições no seu essencial. É de notar, aliás, que algumas das restrições operadas se prendem com razões de operacionalidade dos tribunais administrativos, face à escassez de recursos, e não com razões de ordem substantiva. É exemplo disto a restrição implícita na alínea l) do nº1 do artigo 4.º ETAF, que deixa de fora as impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social que não digam respeito a matéria urbanística ou tributária.

 

2. A teoria da via de facto

A teoria da via de facto (voie de fait administrative), de origem jurisprudencial francesa, surgiu como um modo de responsabilizar a Administração[3] pelas suas atuações materiais que violassem grosseiramente direitos fundamentais dos particulares (mormente, o direito de propriedade privada), ante os tribunais comuns; tendo progressivamente passado a restringir-se às situações, entre aquelas, em que essa atuação não se encontrasse legitimada pela atribuição à Administração, por lei, de nenhum poder em cujo exercício se tivesse materializado o ato em causa. Tradicionalmente, argumentava-se que este tipo de atuação da Administração (sem qualquer título legitimador para o exercício de poderes de autoridade) perdia a sua natureza administrativa, caindo assim fora do âmbito da jurisdição administrativa. Ora, não podemos deixar de considerar esta uma justificação meramente artificial, uma vez que, como salienta Vieira de Almeida, “enquanto atuação material manifestamente ilegal de um órgão da Administração, não deixa [a via de facto] de ser uma atuação no âmbito do direito público, tal como o é uma atuação jurídica portadora de uma ilegalidade tão grave que implique a inexistência do ato ou a sua nulidade”.[4]

O verdadeiro motivo para a submissão destes litígios à jurisdição comum prendia-se com o facto de, num período inicial, se verificar uma profunda promiscuidade entre as atividades de administrar e de julgar a Administração, violadora do princípio da separação de poderes e, portanto, determinante de uma grande (ou até total) ineficácia da responsabilização da Administração perante a Justiça.[5] Ademais, o modelo do contencioso administrativo francês, centrado na figura do recurso de anulação (o qual pressupõe a existência de uma decisão administrativa prévia) não era adequado para fiscalizar as atuações meramente materiais da Administração.[6]

 

3. O “atestado de óbito” positivado: alínea i) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF

Entretanto, o paradigma mudou. A reforma de 2002/2004, que sujeitou à discussão pública os anteprojetos do ETAF e do CPTA, veio concretizar o princípio da tutela jurisdicional efetiva nos tribunais administrativos e fiscais, retirar do centro do processo administrativo o recurso de anulação e consagrar o princípio da igualdade de armas entre recorrente e Administração.[7] A justificação de caráter operacional anteriormente dada para submeter os litígios sobre a via de facto à jurisdição comum já não tem cabimento.

Isto dito, entre 2002 e 2015, não obstante não estarem ainda previstas na lei as atuais alíneas i) e o) do art. 4.º/1 ETAF, não podíamos deixar de considerar estarem já as situações de via de facto abrangidas pela jurisdição administrativa, visto estarem em causa relações administrativas, o que, por si só, já preenchia o critério geral consagrado no art. 1.º/1 ETAF – há que ter aqui em conta a não taxatividade do elenco do art. 4.º/1 ETAF que era indiciada pela utilização do advérbio “nomeadamente” no corpo do mesmo. O que se verificou na jurisprudência desse período foi, porém, como recorda o Professor Jorge Pação[8], uma “incerteza judicial” quanto a este tema, motivada pelo tratamento histórico dado à figura.

Foi em resposta a esta incerteza que se veio aditar, por força do DL n.º 214-G/2015 de 02/10, a alínea i), tal como se encontra hoje redigida, ao rol de matérias expressamente identificadas no ETAF como pertencentes à jurisdição administrativa e fiscal, sendo que devemos considerar estarem aí abrangidas quer as situações em que a Administração atua sem que tenha havido uma prévia decisão administrativa habilitante quer as situações em que se vem a verificar uma atuação da Administração em desconformidade com o ordenamento.[9] Encontra-se, assim, ultrapassada, a todos os níveis, a antiga teoria da voie de fait.

A positivação deste critério, de modo explícito, é uma manifestação do movimento progressivo no sentido de ampliar as competências atribuídas aos tribunais administrativos e fiscais, de modo a respeitar a reserva de jurisdição operada pelo art. 212.º/3 CRP. Procura-se, cada vez mais, aproximar os litígios de natureza administrativa dos respetivos tribunais, permitindo, pelo menos em teoria, um julgamento mais especializado dos mesmos, o que se afigura imperativo para atingir a boa administração da justiça.

 

Beatriz Medina Vera-Cruz Pinto

N.º 58480

TA5



[1] José Carlos Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa, 10ª edição, Coimbra, 2009, pp. 39-41.

[2] Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, 4ª edição, Coimbra, 2020, pp. 162-166.

[3] Carla Amado Gomes, ‘Via de facto’ e tutela jurisdicional contra ocupações administrativas sem título, Revista do Ministério Público, 2017, p. 90.

[4] Vieira de Almeida, "A Via de Facto", perante o juiz administrativo, comentário ao ac. do TCAS, de 22.11.2012, processo 5515/09 in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 104, março/ abril, 2014, p. 44. 

[5] Vasco Pereira da Silva, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise – ensaio sobre ações no novo processo administrativo, 2ª edição, Coimbra, 2008, pp. 13-14.

[6] Jorge Pação, O âmbito da jurisdição administrativa: considerações renovadas sobre as alíneas i), l) e n) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF in Comentários à legislação processual administrativa, 4ª edição, Lisboa, 2020, p. 306.

[7] José Carlos Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa, 10ª edição, Coimbra, 2009, pp. 46-50.

[8] Jorge Pação, O âmbito da jurisdição administrativa: considerações renovadas sobre as alíneas i), l) e n) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF in Comentários à legislação processual administrativa, 4ª edição, Lisboa, 2020, p. 312-313.

[9] Jorge Pação, O âmbito da jurisdição administrativa: considerações renovadas sobre as alíneas i), l) e n) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF in Comentários à legislação processual administrativa, 4ª edição, Lisboa, 2020, p. 307.

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