Análise do artigo 10º do CPTA: Legitimidade Passiva das Entidades Públicas

     A legitimidade passiva dos sujeitos processuais é definida na lei por critérios de admissibilidade da parte demandada no processo judicial. Quando estamos a falar de sujeitos passivos em um processo judiciário, o Código Processual Civil regula esta matéria, mas nos processos administrativos levantam-se questões como qual é o réu a ser demandado quando está em causa uma entidade pública. Essa questão é extremamente importante para saber qual órgão ao certo deve-se demandar em um processo contencioso administrativo, a fim de evitar que o juiz fique impedido de conhecer do mérito da causa. Nos procedimentos administrativos a legitimidade passiva das entidades públicas é definida no artigo 10º do Código do Procedimento dos Tribunais Administrativos, doravante designado somente como “CPTA”. Alguns autores como o Professor Vasco Pereira da Silva[1] entende que este artigo além de definir critérios da legitimidade passiva, como bem diz a própria epígrafe, o artigo também acaba por atribuir personalidade judiciária a algumas entidades públicas que não a possuem.

Ao fazermos uma análise histórica da evolução do CPTA, antes denominado como a Lei de Processo dos Tribunais Administrativos, podemos identificar uma mudança no entendimento da legitimidade processual, pois a legitimidade não era encarada como uma condição da ação (apesar de já ser considerada como um pressuposto). Havia uma clara influencia de um contencioso administrativo de vertente objetivista, em que a importância do processo era garantir a legalidade dos actos administrativos e não tanto uma vertente subjetivista de matriz francesa[2], o que acabava por justificar uma diferença acentuada na letra da lei em algumas passagens da LPTA, como por exemplo quando no recurso contencioso (correspondente à atual ação administrativa especial de impugnação) e nas ações para reconhecimento de direitos ou interesses, a “autoridade recorrida” era o órgão “autor do acto” ou o órgão a quem incumbisse o “reconhecimento”; nos restantes processos, nomeadamente nas ações sobre contratos e em matéria de responsabilidade civil o réu era a pessoa coletiva de direito público.[3]

Dessa maneira, a redação do artigo 10º que possuímos hoje deixa claro que a legitimidade passiva é um pressuposto processual administrativo e que por sua vez também engloba uma concessão às entidades públicas de capacidade processual. O CPTA deixa claro que esta legitimidade faz parte de outros critérios que englobam o objeto do processo que transparece o princípio da tipicidade dos trâmites processuais[4].

Designadamente, o regime geral da legitimidade passiva está no artigo 10.º/1 do CPTA que fala de um interesse na relação material controvertida, como também vemos no artigo 9.°, onde concretizam-se o critério do interesse pessoal e direito do sujeito na ação, como sendo um ato que prejudica direta/imediatamente o sujeito, e se, de modo conexo, da eventual invalidação do ato decorre uma vantagem, igualmente direta/imediata, para o mesmo sujeito[5]. A legitimidade passiva das entidades públicas está definida no artigo 10.º, número 2 do CPTA aonde nos fala que a parte demandada é a pessoa coletiva de direito público alvo nos processos contra o Estado ou as Regiões Autónomas que se reportem à ação ou omissão de órgãos integrados nos respetivos ministérios ou secretarias regionais, em que a parte demandada é o ministério ou ministérios, ou a secretaria ou secretarias regionais, a cujos órgãos sejam imputáveis os atos praticados ou sobre cujos órgãos recaia o dever de praticar os atos jurídicos ou observar os comportamentos pretendidos.

Os critérios de atribuição de legitimidade às entidades públicas dos números 2 a 6 do artigo 10.° parece-nos dizer, na verdade, em quais situações é que as entidades públicas devem ser demandadas e que possuem personalidade judiciária, pois se entendermos que a legitimidade passiva é um pressuposto processual, o que acontece na verdade é uma atribuição de legitimidade, ou seja, uma atribuição de personalidade judiciária. Esses números do artigo 10.° parece dar um passo prévio ao da legitimidade, que é a definição da capacidade, que em contrapartida com o critério-geral do número 1 é possível aferir a legitimidade como um todo. O CPTA acabou por consagrar nesta norma o princípio da coincidência nos diz que há coincidência entre a personalidade jurídica e a personalidade judiciária, segundo o nos permite aferir a personalidade judiciária das pessoas coletivas públicas. Neste sentido, veja-se o Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Norte de 14/07/2017[6], onde salientam uma opinião oposta de que o CPTA elegeu a pessoa coletiva de direito público como sujeito principal do processo administrativo e, assim, “rompeu com o princípio tradicional de atribuir personalidade e capacidade judiciária aos órgãos administrativos”[7].

É de ressaltar também que sucede que o legislador, “ciente da complexidade e heterogeneidade das pessoas coletivas de direito público, mormente do Estado, sobre quem recai uma vastidão de atribuições que são prosseguidas através de uma multiplicidade de órgãos e serviços administrativos, no seio dos quais se incluem os Ministérios, estabeleceu, na segunda parte do n.º 2 do art.º 10.º do CPTA uma importante restrição ao princípio da coincidência, “dele retirando a pessoa coletiva Estado, e colocando os ministérios ao lado das pessoas coletivas públicas como sujeitos do processo administrativo”[8]. Essa restrição é de certa maneira importante para entender a legitimidade passiva do artigo 10.º como restringindo a situações que não incluam o Estado e que na verdade, dão também capacidade para o Ministério Público da mesma maneira que concede legitimidade às outras pessoas coletivas de direito público.

Portanto, apesar de, em uma primeira análise, parecer que o artigo 10.º pretende conceder capacidade judiciária para às pessoas coletivas o artigo 10.º parece-nos dar uma noção da legitimidade processual passiva das entidades públicas como um todo, pois o próprio código instituiu critérios para entendermos qual instituição é que deve ser demandada quando está em causa uma entidade coletiva e não se ela há ou não personalidade. A questão do artigo 10.º abre mais a problemática envolta da necessidade de representação legítima do Estado pelo Ministério Público do que propriamente uma discussão técnica do artigo (sobre o objeto do processo). Em suma, o princípio da coincidência e a restrição imposta na segunda parte do artigo parece deixar claro que estamos perante uma questão de legitimidade passiva, na medida em que se há coincidência entre a personalidade jurídica e judiciária, o que resta para discutir é se à entidade pública possui ou não um interesse direito em ser demandada.

Feito por: Nicole Borges Esposito 



[1] VASCO PEREIRA DA SILVA, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, Ensaio sobre as Ações no Novo Processo Administrativo, Coimbra, Almedina, 2005, Página 250 e ss.

[2] Manuel Rojas Pérez, El carácter subjetivo del sistema contencioso administrativo, REVISTA DERECHO PUBLICO. Link: http://www.ulpiano.org.ve/revistas/bases/artic/texto/RDPUB/110/rdpub_2007_110_53-68.pdf

[3] Esperança Mealha, “Personalidade Judiciária e Legitimidade Passiva das Entidades Públicas”, Publicações CEDIPRE Online- 2. Link: https://www.fd.uc.pt/cedipre/wp-content/uploads/pdfs/co/public_2.pdf

[4] A Revisão De Processo nos Tribunais Administrativos, Centro de Estudos Judiciários, Março, 2017. Link: http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/Administrativo_fiscal/eb_RevisaoCPTA_I.pdf

[5] Jurisprudência citada do Tribunal Arbitral do Desporto, Acórdão 44/2020, página 11. Link: https://www.tribunalarbitraldesporto.pt/files/decisoes/TAD_44-2020.pdf

[7] Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, em Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 3.ª Ed. Revista, Coimbra, Almedina, página 110

[8] FREITAS DO AMARAL, em “Curso de Direito Administrativo”, 2.ª edição, Vol. I, página 221

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