A arbitragem administrativa necessária: uma verdadeira arbitragem ou um problema constitucional?
Já se passou o tempo em que fora considerado que o direito administrativo não estava sujeito à arbitragem. Isto porque, tal como referem os professores Mário Aroso de Almeida1 e Tiago Serrão2, o que está em causa é a possibilidade de um tribunal arbitral, tal como qualquer outro órgão de jurisdição, julgar o cumprimento, pela administração pública, das normas e princípios jurídicos que a vinculam. Os árbitros, num litígio administrativo, nada mais vão fazer do que verificar se a legalidade na atuação administrativa está a ser cumprida3.
Entendido isto, podemos considerar que surgem dois grandes tipos de arbitragem, nomeadamente a arbitragem voluntária e a arbitragem necessária. A primeira consiste na resolução alternativa de um litígio, tendo em consideração a vontade das partes, ou seja, a partir da celebração de um contrato, as partes, de comum acordo, decidem resolver o litígio em um tribunal arbitral. A segunda situação também resultará numa instauração de um conflito a ser resolvido por um tribunal arbitral, mas aquele não terá por base a vontade das partes, mas sim a própria determinação legal. Ou seja, enquanto na primeira situação as partes decidem recorrer a resolução de conflitos por via da arbitragem, na segunda circunstancia é a própria lei que determina o recurso aos tribunais arbitrais.
E é aqui que surgem os problemas, nomeadamente:
- Por quais motivos o próprio Estado abdica dos seus poderes jurisdicionais e dá preferencia aos tribunais arbitrais?
- Será que a falta de autonomia privada, numa arbitragem administrativa necessária, retira a própria característica de uma verdadeira arbitragem?
- E, por fim, a arbitragem necessária desrespeita o artigo 20o da CRP no que diz respeito ao direito fundamental de acesso aos tribunais estaduais?
Este post tentará esclarecer tais considerações.
1) Razões que podem levar à arbitragem necessária:
Como bem ilustra o doutor António de Magalhães Cardoso4 as justificativas para o Estado abdicar, primariamente, do seu poder de jurisdição baseiam-se:
Na especialidade introduzida em alguns litígios, nomeadamente nas arbitragem do desporto;
Na impossibilidade de os tribunais estaduais decidirem de forma oportuna e no tempo devido, sendo necessário recorrer aos tribunais arbitrais para garantir uma determinada celeridade;
Em algumas situações a natureza substancialmente arbitral, como é o caso da determinação do valor da indemnizações nas expropriações;
1 Mario Aroso de Almeida, Manual de processo Administrativo, 4a edição, pg 530
2 Comentário à Legislação Processual Administrativa; Volume II; 5a edição, em: a arbitragem no CPTA. 3 Mario Aroso de Almeida, Manual de processo Administrativo, 4a edição, pg 537
4 VI Curso de Pós Graduação em Direito da arbitragem, aula de 24 de outubro
E por fim, nos termos do artigo 476/2 do CCP a arbitragem é necessária, em contextos de litígios relativos a procedimentos ou a contratos aos quais se afigure aplicável o CCP. 5 6
Ora, dito isto, penso que não foi um erro ou uma incoerência legislativa, como algum setor doutrinário7 defende. Isto porque a arbitragem necessária está inerente à uma lógica de especialização e, para além disso, não se sentia que os tribunais estaduais possuíssem a capacidade para responder aos problemas com a agilidade exigida. Logo foi uma opção que se preocupou com a eficiência e eficácia dos julgados.
2) Arbitragem necessária como uma verdadeira arbitragem?
Segundo o professor Menezes Cordeiro, a arbitragem consistiria numa situação jurídica em que ha uma remissão, pelas partes, à composição de um litígio para a decisão de um terceiro. Ou seja, a arbitragem necessária não se reconduz a original noção, uma vez que, para ele, a lei não pode impor litígios e ser, assim, considerado como uma verdadeira arbitragem, já que os sujeitos deveriam ter a autonomia de não quererem aquele processo8. Logo, uma remissão legal nunca poderia consubstanciar uma arbitragem.
No entanto, tenho de discordar do senhor professor, para mim o traço característico desta faculdade alternativa de resolução de litígio é o poder conferido às partes de escolher os árbitros, é a escolha de quem irá dirimir o conflito o traço principal da arbitragem9. Para além disso, se defendermos que a arbitragem necessária não faz parte da concepção original de uma verdadeira arbitragem como iríamos proceder a uma conciliação entre tal ideia e o artigo 209 da CRP? É porque, ao analisar o mencionado artigo, não é feita nenhuma diferenciação entre os tribunais arbitrais voluntários e os necessário. Portanto, se estes últimos não correspondem a uma situação de arbitragem, não poderíamos justificar o seu poder jurisdicional, uma vez que a lei é taxativa no artigo 209. Logo, ao meu ver, é de se afastar a referencia às arbitragens necessárias como litígios estranhos à lógica arbitral.
3) Por fim, a última questão que se coloca é se as arbitragens necessárias são inconstitucionais:
Essa questão surge no contexto de um confronto entre o artigo 20/1 e 5 da CRP e o artigo 209/2. Ou seja será que a imposição, por uma arbitragem necessária, contraria a garantia aos acessos aos tribunais? A questão é uma vexata quaestio e está longe de ser unânime na doutrina e na jurisprudência.
5 Tiago Serrão e Diogo Calado; Arbitragem de direito administrativo em Portugal: uma visão panorâmica.
6 Não será discutido aqui se tal situação refere-se a uma arbitragem voluntária ou necessária, uma vez que tal questão justificaria todo um novo post só sobre o tema. Mas, em linhas breves, este foi inserido como uma situação de arbitragem necessária, principalmente pelo elemento literal forte e por um risco de ineficiência que a arbitragem voluntária acarretaria às matérias de atos administrativos pré-contratuais.
7 Nomeadamente os professores Menezes Cordeiro, Maria França Gouveia e Manuel Pereira Barrocas. Como citado pelo Doutor Magalhães Cardoso
8 VI Curso de Pós Graduação em Direito da Arbitragem, aula de 17 outubro lecionada pelo professor António Menezes Cordeiro. O professor também reforça esta posição no seu manual Tratado da Arbitragem, 2015.
9 Posição também adotada pelo Doutor António Magalhães, IV Curso de Pós Graduação em Direito da Arbitragem, aula 24 de outubro.
Parte da doutrina10 vem justificar que a arbitragem necessária contraria o artigo 20/1 da CRP. Isto porque negaria11 o acesso aos tribunais estaduais e por isto defende ser um mecanismo inconstitucional. Numa visão oposta, outros sustentam que quando olhamos para a garantia de acesso aos tribunais esta tem de ser conjugada com o artigo 209/2 e, desta forma, como não ha uma reserva judicial estadual administrativa, não haveria uma contradição material da CRP.
Por outro lado, o Professor Rui Lanceiro12 aponta que a arbitragem necessária não releva da autonomia da vontade das partes e nesse plano apresenta contornos diversos da arbitragem voluntária13. E é por isto que se trata de uma restrição a um direito fundamental, devendo sempre ser posta um controle de proporcionalidade e caso a arbitragem necessária não passe neste teste, deverá ser considerada inconstitucional.
Por último e a posição a qual possuo maior apreço retrata uma vertente moderada14. Isto significa reconhecer que verdadeiramente não ha uma reserva jurisdicional estadual, logo os tribunais arbitrais, ao exercerem a sua competência jurisdicional, estão aptos para decidir uma arbitragem necessária. No entanto, temos de cumprir o disposto no artigo 20/1 em que o acesso aos tribunais, nesse preceito, é tendencialmente estadual15, apesar de não existir uma reserva de jurisdição e para isto é preciso considerar que os particulares, pelo menos e se assim desejarem, poderão recorrer aos tribunais estatuais. Ora, isto faz todo o sentido porque, em ultima hipótese, está sempre disponível um recurso ao tribunal estadual, o qu nunca poderia ser considerado inconstitucional por esta via. E, por outro lado, se já é admissível no artigo 185-A/3c um recurso de revista nos casos de arbitragens voluntárias, mais faz sentido que as arbitragens necessárias usufruam de tal faculdade.
10 Pedro Gonçalves, ao defender que o acesso aos tribunais é tendencialmente estaduais. Citado no AC no 230/2013
11 Gomes Canotilho
12 Rui Lanceiro; A arbitragem administrativa em debate: problemas gerais e arbitragem no âmbito dos códigos dos contratos públicos, pg 60; 2018.
13 AC no 230/2013.
14 Posição também adotada pelo Doutor António Magalhães.
15 AC no 230/2013 na sua fundamentação.
Giovanna Lacerda,
Nº de aluna: 57582
Comentários
Enviar um comentário