A arbitragem dos litígios pré-contratuais


No que concerne aos litígios que envolvem a Administração estes não se desenvolvem apenas perante os tribunais estaduais, mas também perante tribunais arbitrais. Neste âmbito, estipula o art. 1º nº5 da Lei da Arbitragem Voluntária que o Estado e outras pessoas coletivas de direito público podem celebrar convenções de arbitragem, na medida em que para tanto estejam autorizados por lei.

O art. 180º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (doravante CPTA) consagra um elenco de matérias sobre as quais é admitida a constituição de tribunal arbitral. O objeto da presente análise prende-se especificamente com o nº3 do art. 180º do CPTA.

Apesar de alguns autores[1] virem defendendo a possibilidade de submeter a arbitragem litígios pré-contratuais, foi apenas a versão do CPTA introduzida pela revisão de 2015 que passou a consagrar de forma expressa a arbitrabilidade dos conflitos surgidos na fase pré-contratual.

Efetivamente, estabelece o art. 180º nº3 CPTA, já depois da revisão de 2019 que alterou ligeiramente o preceito, que quando esteja em causa a impugnação de atos administrativos relativos à formação de algum dos contratos previstos no artigo 100.º, o recurso à arbitragem seguirá os termos previstos no Código dos Contratos Públicos (doravante CCP), com as especialidades constantes das alíneas a) e b).  

A consagração da possibilidade de recurso à arbitragem dos atos pré-contratuais levanta desde logo o problema de “adequação do modelo binário de arbitragem”[2] a litígios que podem envolver um elevado número de interessados. A este propósito, importa desde já ter presente o nº2 do art. 180º CPTA que dispõe que quando existam contrainteressados, a regularidade da constituição do tribunal arbitral depende da aceitação destes.

Da conjugação dos dois preceitos podemos concluir que para que possa haver arbitragem será necessário que todos os interessados tenham dado o seu acordo, já que se houver algum contrainteressado que não o tenha feito, vale a regra do art. 180º nº2 CPTA e o tribunal arbitral não se considera regularmente constituído pelo que não poderá o litigio ser submetido à arbitragem. Assim, e de forma a contornar os obstáculos de ordem prática e facilitar a obtenção de aceitação por parte de todos os interessados, o entendimento doutrinário maioritário era de que a entidade adjudicante podia concretizar a proposta arbitral nas peças do procedimento.

Com revisão do CCP em 2017, a alínea a) do nº2 do art. 476º do CCP parece vir a consagrar expressamente uma solução para a necessidade de concordância por parte dos interessados, já que estipula que quando a entidade adjudicante opte pela sujeição dos litígios a arbitragem é obrigatória contar com a aceitação por parte de todos os interessados quanto à jurisdição de um centro de arbitragem institucionalizado competente para o julgamento de questões relativas ao procedimento de formação de contrato.

Assim, apesar do artigo 476.º do CCP estipular à partida, a natureza voluntária da arbitragem em sede de contencioso pré-contratual, na medida em que o respetivo regime processual é aplicável apenas quando a entidade adjudicante opte pela sujeição do litígio à jurisdição arbitral, tudo leva a crer que o legislador tenha pretendido tornar a arbitragem obrigatória para os participantes, concorrentes e contratantes sempre que a entidade adjudicante assim o determine.

Entende, e bem, o Professor Ricardo Branco[3] que as entidades adjudicantes não se encontram obrigadas a recorrer à arbitragem, e apenas, querendo fazê-lo, estão vinculadas à observância dos referidos preceitos. No entanto, não podemos deixar de notar, na senda dos Professores Tiago Serrão e Marco Caldeira, que o facto de não existir uma imposição de recurso à arbitragem não altera a questão em apreço: tratar-se-á de uma arbitragem necessária sempre e quando a entidade adjudicante assim livremente o decidir.[4] De facto, perante o enquadramento normativo atual, parece que a entidade adjudicante poderá impor a todos candidatos a sujeição à arbitragem desde logo nos documentos do procedimento.

Quanto a esta questão, defende o Professor Miguel Assis Raimundo que não há arbitragem necessária porque cabe ao interessado fazer um juízo global sobre o seu interesse em participar num dado procedimento.[5] Segundo este entendimento, quem se queira candidatar age ao abrigo da sua autonomia, pelo que cabe ao candidato avaliar se tem em interesse em participar num concurso em que um possível conflito será resolvido em sede de arbitragem.

Com a devida vénia, não podemos deixar de discordar visto que este raciocínio impõe uma limitação à liberdade económica do candidato pelo simples facto de não acordar, ab initio, com a sujeição do eventual litígio pré-contratual à arbitragem.

Perante o exposto, cumpre apontar algumas soluções que de alguma forma possam assegurar, na maior extensão possível, a liberdade dos concorrentes de aceitarem ou não a sujeição a arbitragem preconizada pela entidade adjudicante bem como a “igualdade de armas” perante um eventual litígio.

Em primeiro lugar, afigura-se necessário que os concorrentes deverão aceitar expressamente a cláusula compromissória que conste dos documentos do procedimento, não se podendo entender que a mera participação no concurso equivale a aceitação (tácita) dessa cláusula.

Por fim, e não menos importante, tendo em conta que o art. 182º do CPTA faz depender o recurso à arbitram pelo particular, no âmbito dos litígios previstos no art. 180º CPTA, da existência de uma lei especial que, à data, ainda não existe, consideramos que é tempo de se proceder à elaboração da referida da lei, de modo a que o art. 182º CPTA deixe de figurar como um “direito vazio”.

 

Inês Pedro

Nº 58631



[1] Destaca-se Ana Perestrelo de Oliveira que entendia estarmos perante uma “lacuna oculta”, a ser integrada quanto aos atos pré contratuais 180º nº1 a) CPTA. Cf. Arbitragem De Litígios Com Entes Públicos, 2º edição, Almedina, Coimbra, 2015.

[2] Cf. Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, 4º Edição, Almedina, 2020.

[3] Cf. Ricardo Branco, Arbitragem e Direito Público – Arbitragem: Da experiência portuguesa ao futuro, acessível em https://www.abreuadvogados.com/media/qijjagv2/arbitragem-e-direito-p%C3%BAblico.pdf

[4] Cf. Marco Caldeira e Tiago Serrão, As arbitragens pré-contratuais no Direito Administrativo português: entre a novidade e o risco e inefectividade in Arbitragem e Direito Público, Reimpressão, AAFDL Editora 2018.

[5] Cf. Miguel Assis Raimundo, Arbitragem (artigo 476.º do anteprojecto),in https://contratospublicos.net/2016/10/07/arbitragem-artigo-476-o-do-anteprojecto/

 

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