A Competência dos Tribunais Judiciais para Apreciar o Valor da Indemnização em Sede de Expropriação

                    A ordem jurídica portuguesa, mais concretamente o poder jurisdicional, encontra-se dividida em várias categorias de tribunais, sendo que essa divisão é feita tendo em conta a natureza dos litígios, tal como se extrai do art. 209º CRP.

                Os tribunais judiciais possuem uma competência subsidiária, pois estes julgam todas as matérias que não sejam atribuídas a outras jurisdições (entre elas a jurisdição administrativa), independentemente de as suas competências específicas compreenderem as matérias civis e criminais.

                Basta atender ao disposto no art. 212º nº3 CRP para aferir que cabe aos tribunais administrativos e fiscais julgar ações e recursos contenciosos relacionados com litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais. Deverá este artigo ser conjugado com o art. 1º nº1 do ETAF que remete para o art. 4º desse mesmo Estatuto o qual abrange, de forma não taxativa, o vasto campo de competência dos tribunais administrativos e fiscais.

                O critério base para saber que jurisdição deverá apreciar um litígio será então o critério da natureza da relação litigiosa- se a natureza for administrativa, então serão os tribunais administrativos a julgar o caso. Contudo, o legislador não foi claro nem rigoroso e começaram a criar-se algumas dúvidas quanto à flexibilidade deste critério. Ou seja, perguntamo-nos se, por vezes, este critério pode ser afastado, e em que medida. A doutrina tem vindo a acolher esta ideia de “flexibilidade” da jurisdição, permitindo que litígios que à partida, pela sua natureza, deveriam ser julgados numa jurisdição, não o sejam, sem colocar em causa a constitucionalidade das decisões judiciais desses mesmos litígios e das normas que fixam a competência desses mesmos tribunais.

                A expropriação é o ato através do qual a Administração Pública[1], com base nas suas atribuições, põe em causa o direito de propriedade de um particular em nome da utilidade pública (art. 1º Código das Expropriações).

                O particular expropriado tem um direito constitucionalmente protegido à “justa” indemnização[2], sendo que este é um “elemento integrante do próprio ato de expropriação”[3], tal como se extrai do art. 62º nº2 CRP.

Face a isto, uma das questões que tem feito “correr tinta” na nossa doutrina e jurisprudência prende-se com o facto de saber se um litígio que tenha por base um ato expropriativo da Administração Pública deve ser apreciado em sede de tribunais judiciais ou, por sua vez, em sede de tribunais administrativos.

Para uma parte da doutrina[4] e jurisprudência[5], fará todo o sentido que a fixação do valor das indemnizações expropriatórias seja feita pelos tribunais administrativos. Existe uma vasta linha de argumentos neste sentido e apreciarei alguns deles.

Em primeiro lugar, o art. 4º do ETAF, mais especificamente o seu nº1 poderá, sem dúvida abranger esta questão que, por sua vez, não cabe no nº 2 ou no nº 3 desse preceito.[6]

Para além disto, poderá dizer-se que no regime do antigo ETAF (1984) faria até sentido remeter esta questão para os tribunais judiciais, quer dada a escassez dos tribunais administrativos e a lentidão dos mesmos na resolução de conflitos; quer dada a falta de confiança que se tinha nos tribunais administrativos quando o assunto era a defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos. Contudo, hoje em dia essas questões já não têm fundamento. Em primeiro lugar, existem, aos dias de hoje, quinze tribunais administrativos e fiscais (TAF). Em segundo lugar, quanto à questão da proteção dos direitos fundamentais dos cidadãos, basta atender ao nº1 do art. 4º ETAF para aferir que é ampla a competência dos TAF quando o tema é a “tutela de direitos fundamentais”.

Poderá ainda referir-se que será incongruente o facto de o expropriado, quando queira impugnar a validade das declarações de utilidade pública[7], se deva dirigir ao tribunal administrativo; mas quando queira discutir o valor indemnizatório dessa mesma expropriação se deva dirigir ao tribunal judicial[8].

Para outra parte da doutrina (e para grande parte da jurisprudência), a fixação do valor de indemnização que tem como base um ato de expropriação deve ser feita em sede de tribunais judiciais.

Ora, por um lado poderá argumentar-se que a competência de um tribunal deverá ser apreciada em função da causa de pedir e do pedido (pretensão) e, estando em causa uma indemnização relativa aos prejuízos causados por uma expropriação, estamos em matéria de direito de propriedade, que irá convergir num valor pecuniário a ser definido e, como tal, fará todo o sentido que sejam os tribunais judiciais a apreciar esta questão.

A ideia a reter é a de que estamos perante uma indemnização que é consequência da violação de um direito privado e deverá ser avaliada segundo critérios que têm em conta única e exclusivamente o valor real dos bens que foram expropriados. Fará, assim, todo o sentido que sejam os tribunais que estão mais familiarizados com estas questões de direitos reais a julgar esta causa – os tribunais judiciais.

Na minha ótica, com a devida vénia, a primeira posição doutrinária parece ser a mais defensável. Ora, o direito de propriedade, apesar de assim parecer, não constitui uma posição jurídica exclusivamente privatística- a propriedade não pode ser só vista no âmbito dos direitos reais, visto que também reveste vasta importância enquanto direito fundamental.

É importante referir que a Administração Pública, aquando de uma ação de expropriação, está revestida de ius imperii e age com base no "poder de conformar a realidade de acordo com os seus objetivos", e em nome do interesse público e coletivo.[9]

 Parece-me que atribuir aos tribunais judiciais a competência para julgar litígios com base numa suposta posição paritária entre Administração e o particular não é o mais correto visto que, mesmo que estejamos apenas a definir um montante, este montante tem por base um ato expropriativo, que é uma das maiores manifestações de poderes de autoridade por parte das entidades Estaduais.

Assim, a solução hoje em dia consagrada parece estar ferida de inconstitucionalidade, estando “a tratar como igual aquilo que não é igual”.

 

BIBLIOGRAFIA

Mário Aroso de Almeida, O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos

José Carlos Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa. Lições

Mário Esteves de Oliveira e Rodrigues Esteves de Oliveira, CPTA e ETAF Anotados

Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, Vol. II

Antunes Varela, Das Obrigações em Geral Vol. I

Oliveira Ascensão, Direito Civi - Reais

Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada Vol. I

Freitas do Amaral, Direito Administrativo Vol. II

Alves Correia, As Garantias do Particular na Expropriação por Utilidade Pública

Neves Ribeiro, O Estado nos Tribunais

António Pais de Sousa e Manuel Fernandes da Silva, Da Justa Indemnização nas Expropriações de Utilidade Pública

Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo

Carla Vicente, A Urgência na Expropriação- Algumas Questões

Fernando Alves Correia, Manual de Direito do Urbanismo Vol. II

“Expropriações, Tribunais e Outras Angústias Indemnizatórias e de Legalidade" in Conferência da Ordem dos Advogados

 

JURISPRUDÊNCIA

Acórdão do STJ de 17/04/1997, proc. Nº 570/96

Acórdão do STJ de 13/07/1998, proc. Nº 072402

Acórdão do Tribunal de Conflitos de 5 de Novembro de 1981

Acórdão do Tribunal de Conflitos de 8 de Fevereiro de 2018, proc. Nº 046/17

Acórdão nº 599/2015, Publicação do DR nº134/2016, Série II de 2016-07-14

Acórdão do Tribunal Constitucional, proc.  nº 317/95

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 12/03/2015, proc. Nº 08062/11

 

SOFIA CARRILHO URBANO

Aluna nº 58386



[1] Aqui fala-se em Administração Pública em sentido material, visto que se desconsidera a natureza da pessoa coletiva, desde que esta exerça funções públicas/administrativas.

[2] A justa indemnização tem como objetivo ressarcir o prejuízo que o ato expropriativo causou ao particular (art. 23º CE). 

[3] Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da Republica Portuguesa Anotada, 2 edição, 1 volume

[4] É o caso dos Professores Doutores Freitas do Amaral, Aroso de Almeida, Fausto Quadros e Colaço Antunes.

[5] Acórdão do T. Constitucional nº 965/96, de 11/7/96, in D.R., II Série, de 23/12/96

[6] A determinação do quantum indemnizatório poderá ser incluída no nº1 do art. 4º ETAF, nomeadamente nas alíneas a), se considerarmos que estamos perante uma relação jurídica administrativa.

[7] A declaração de utilidade pública é da competência do ministro do departamento em questão (art. 13º CE).

[8] São os tribunais judiciais que fixam a indemnização e a data do pagamento (art. 24º nº3 CE).

[9] Estamos então perante um verdadeiro ato de gestão pública, ou seja, um ato que se enquadra no exercício de uma função pública na qual a Administração está revestida de poderes de autoridade.

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