A propósito da competência dos tribunais comuns para dirimir litígios relativos ao montante da indemnização por expropriação por utilidade pública
Dispõe o artigo 212.º, n.º 3, da CRP, que «[c]ompete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais». Uma interpretação simplista desta norma, aditada pela revisão constitucional de 1989, não deixaria dúvidas: aos tribunais administrativos compete julgar as acções que tenham por base uma relação jurídica administrativa, sendo esta, nas palavras de FREITAS DO AMARAL, «toda a relação entre sujeitos de direito, públicos ou privados, que actue no exercício de poderes ou deveres públicos, conferidos por normas de direito administrativo»[1].
No entanto, de imediato se colocou a questão de saber se, por um lado, os tribunais administrativos só podem julgar questões de direito administrativo e se, por outro, só os tribunais administrativos podem julgar essas questões de direito administrativo[2]. No fundo, procurou-se saber se o artigo 212.º, n.º 3, da CRP, consagra uma reserva material absoluta de jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais.
Esta questão surge por via dos traumas que têm minado o
direito administrativo e o contencioso administrativo desde a sua criação, na
expressão cara a VASCO PEREIRA DA
SILVA:
os tribunais administrativos e fiscais apenas passaram a ser obrigatórios a
partir da revisão constitucional de 1989. Na versão original da Constituição de
1976, os tribunais administrativos eram de criação facultativa. Justificou-se
que, dado o reduzido número de tribunais administrativos operantes e a
consequente falta de proximidade entre estes e as populações, que certas
matérias, designadamente, aquelas que consubstanciariam um peso ablativo maior
na esfera jurídica dos particulares, fossem julgadas pelos tribunais judiciais,
mais próximos das populações, mais aptos a dar uma resposta célere, em prol da
eficácia e da economicidade da justiça.
Iremos, nesta sede, dar conta de um litígio (que parte de
uma relação jurídica administrativa), cuja resolução compete aos tribunais
judiciais, e não aos tribunais administrativos: o quantum da
indemnização por expropriação por utilidade pública. Em primeiro lugar, cumpre
averiguar a legitimação deste litígio ser julgado por tribunais comuns; em
segundo lugar, iremos tentar perceber o porquê desta legitimação e desta
prática; em terceiro lugar, cumpre opinar, de jure condito e de jure
condendo, sobre o regime em análise.
Voltemos à questão com que iniciámos este pequeno texto:
consagra o artigo 212.º, n.º 3, da CRP, uma reserva material absoluta de
jurisdição atribuída aos tribunais administrativos? Interessa-nos,
especialmente, a segunda vertente apontada por VIEIRA DE
ANDRADE
desta reserva material: se apenas os tribunais administrativos podem julgar
litígios que tenham por base uma relação jurídica administrativa.
Sobre esta questão, um certo sector da doutrina,
encabeçado por MÁRIO ESTEVES DE
OLIVEIRA,
defende que resulta do preceito em apreço uma reserva, nos termos da qual o
legislador ordinário não pode atribuir a outros tribunais os litígios
materialmente administrativos, salvo excepções originadas por uma
impossibilidade em cumprir tal reserva ou quando não se mostre prático ou
adequado aplicar tal preceito constitucional[3].
Outro sector da doutrina, mitigado, na expressão de VIEIRA DE
ANDRADE,
defende a remissão para os tribunais judiciais de questões que, ainda que
resultem de uma relação jurídica administrativa, ponham em causa direitos
fundamentais dos cidadãos. Este sector doutrinário baseia-se na ideia de que os
tribunais judiciais asseguram «uma protecção processual mais intensa desses
direitos, tendo em consideração sobretudo as dificuldades da jurisdição
administrativa, por falta de meios e insuficiência do número de tribunais, para
corresponder às necessidades de uma tutela judicial efectiva»[4].
O limite a esta atribuição residual de competência será o impedimento de os
tribunais administrativos exercerem a sua reserva de jurisdição em condições de
efectividade[5].
A jurisprudência do STA, do Tribunal Constitucional e do
Tribunal de Conflitos aponta para o preceito constitucional em análise como uma
“cláusula geral”, um “modelo típico”, que não consagra uma reserva material
absoluta, mas sim uma garantia institucional para o legislador ordinário, que
não pode extravasar o núcleo essencial da organização judicial, mas que pode
criar certos desvios a esse modelo judicial constitucionalizado: «admitindo-se
a razoabilidade dessas “remissões” orgânicas, muitas delas tradicionais, que
podem ter justificações diversas – devendo, por isso, incluir-se na margem de
escolha política e, portanto, de liberdade constitutiva própria do poder
legislativo, designadamente naquelas situações de fronteira em que há dúvidas
de qualificação ou zonas de intersecção entre as matérias administrativas e as
restantes»[6].
A posição dominante na nossa doutrina
jusadministrativista passa por assumir os tribunais administrativos como
“tribunais comuns em matéria administrativa”, admitindo, portanto, na esteira
da jurisprudência, a admissibilidade de certos desvios.
Esta interpretação do preceito constitucional, mais
mitigado e não tão literal, é a única que não torna inconstitucional remissões
da legislação ordinária de litígios jurídico-administrativos para os tribunais
judiciais. Entre elas, os litígios sobre a indemnização devida em casos de
expropriações por utilidade pública.
O (complexo) procedimento expropriativo prevê que, caso a
entidade expropriante e o expropriado não cheguem a acordo sobre o montante da
indemnização, este é fixado por arbitragem (necessária), sendo a decisão
arbitral passiva de recurso para os tribunais judiciais, nos termos dos artigos
38.º, n.º 1, e 51.º, do Código das Expropriações.
Estamos, portanto, perante uma situação que tem por base
uma relação entre o particular e a Administração Pública, mas que vai ser
resolvida por um tribunal judicial e não por um tribunal administrativo. A
justificação para esta remissão é quase unânime na doutrina. MÁRIO AROSO DE
ALMEIDA e
FREITAS
DO
AMARAL falam
numa «velha tradição»[7],
cuja remissão se justifica pelos custos sociais que adviriam para as
populações, sobretudo do interior, caso os tribunais administrativos fossem
competentes para dirimir os litígios em questão[8].
VIEIRA
DE ANDRADE
sustenta que esta opção legislativa se justifica «por juízos de
praticabilidade, em face do escasso número e da deficiente implantação
geográfica dos tribunais administrativos, que importaria designadamente
elevados custos de deslocação para os particulares, em especial para as
populações do interior[9].
FERNANDO
ALVES
CORREIA
sublinha a existência de uma «larga tradição jurídica», porquanto a organização
judiciária dos tribunais judiciais é mais apta e mais adequada, dada a sua
proximidade às populações, a resolver os litígios em questão, garantindo-se uma
maior protecção dos direitos e interesses dos proprietários[10].
Chamado a pronunciar-se sobre esta questão, o Tribunal
Constitucional, em dois acórdãos (n.ºs 746/96 e 965/96[11])
muito semelhantes, sustentou que os tribunais administrativos são tribunais
comuns em matéria administrativa, não se devendo falar, a propósito do artigo
212.º, n.º 3, da CRP, de uma reserva material absoluta de jurisdição
administrativa, visto que razões ligadas à tradição jurídica e de
praticabilidade na defesa dos direitos dos particulares impõem certos desvios a
esta regra. Sustentando o mesmo Tribunal, no acórdão n.º 745/96, citando as alegações de recurso do Ministério Público: «sendo, na realidade, a
justa indemnização a conversão ou sucedâneo do direito de propriedade extinto
em consequência da expropriação – e estando vedada à jurisdição administrativa
a dirimição dos litígios relativos a direitos reais, de natureza privada – é
perfeitamente compreensível que a lei lhes retire também competência para o
arbitramento de tal indemnização, confiando-a aos tribunais comuns». Na senda deste argumento, no acórdão n.º 965/96, o Tribunal
Constitucional defendeu que nesse momento – o momento indemnizatório – já não
está em causa uma questão que verse sobre o interesse colectivo nem sobre
poderes de autoridade do Estado: nesse momento, trata-se da conversão de um
direito de propriedade num montante pecuniário, o que atribui ao litígio um
carácter privado.
Nesta conformidade, o argumento do Tribunal
Constitucional parte de duas premissas: por um lado, defende, ao lado da
doutrina já exposta, que a norma constitucional não consagra uma reserva
material absoluta de jurisdição administrativa e que se justifica, em prol de
uma maior protecção dos particulares, um desvio ao modelo típico de tribunais
comuns em matéria administrativa consagrado no artigo 212.º, n.º 3, da CRP, e
que, consequentemente, se atribua competência aos tribunais judiciais para
dirimir litígios que versem sobre relações jurídicas administrativas; por
outro, refere que a fase da expropriação litigiosa, por oposição ao
procedimento administrativo expropriativo, não tem uma natureza de direito
público, visto que o Estado não surge, nessa fase, munido de poderes de
autoridade: o que está em causa é, essencialmente, avaliar em dinheiro um
direito real, privado, não sendo competente para aferir tal questão um tribunal
administrativo. Ambos estes argumentos são autónomos, diz o Tribunal: mesmo que
se julgue que o segundo argumento não seja procedente, prevalecerá o primeiro,
justificando-se, em ultima ratio, a atribuição de competência aos
tribunais judiciais na tradição jurídica.
Salvo o devido respeito, não sufragamos a posição
veiculada pelo Tribunal Constitucional relativamente ao segundo argumento.
Antes da entrada em vigor do ETAF de 2002, estavam excluídas da jurisdição
administrativa as questões de direito privado da Administração, exclusão que
desapareceu com a entrada em vigor do referido diploma. Entendeu o legislador
que a natureza privada da relação entre o particular e a Administração não
prejudica a competência dos tribunais administrativos para dirimir um litígio
que verse sobre essa relação. Veja-se, neste sentido, que compete à jurisdição
administrativa a resolução de conflitos relativos a contratos de direito
privado celebrados pela Administração (artigo 4.º, n.º 1, al. e) do ETAF). Da
mesma forma, compete à jurisdição administrativa julgar os casos relativos a
responsabilidade civil extracontratual do Estado e de outras pessoas colectivas
de direito público, ainda que decorrentes de actos de gestão privada. É clara a
intenção do legislador do ETAF de submeter à jurisdição administrativa questões
que envolvam relações com a Administração, ainda que tenham natureza privada.
Desta forma, face à legislação actual, não faz sentido
subtrair aos tribunais administrativos a competência para dirimir litígios que
definam o montante da indemnização por expropriação por utilidade pública
apenas por ser o objecto do litígio de natureza privada.
Quanto ao primeiro argumento, dominante na jurisprudência
e na doutrina analisada, também opomos algumas reticências. A “tradição” é
sempre um argumento débil. Se, no passado, a via dos tribunais judiciais tinha
razão de ser (assumimos), hoje, essa ideia é refutável e não nos afigura
razoável que se continue a justificar essa prática como uma “tradição”.
Como defendem MÁRIO AROSO DE
ALMEIDA
e FREITAS
DO
AMARAL,
a «constitucionalização exprime uma clara opção no sentido da valorização da
justiça administrativa» e, nessa conformidade, «a apreciação jurisdicional das
questões materialmente administrativas não deve ser subtraída aos tribunais
administrativos para ser atribuída à competência de outras ordens de tribunais»[12].
Face a esta ideia, de colocar a jurisdição administrativa “em pé de igualdade”
com a jurisdição comum, não se concebe que o legislador ordinário tenha uma
certa desconfiança nos tribunais administrativos para dirimir litígios
relativos a direitos de propriedade, por considerar que os seus poderes
limitados e que a sua débil organização não transmitem “segurança” suficiente
aos interessados[13].
Não queremos entrar na (eterna) discussão acerca do (mau)
funcionamento dos tribunais administrativos e fiscais, mas não conseguimos deixar de acreditar que há uma descredibilização da justiça administrativa por parte do legislador ordinário. Na
esteira de MÁRIO AROSO DE
ALMEIDA
e FREITAS
DO
AMARAL,
«a constitucionalização da jurisdição administrativa como a sede própria para a
resolução dos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas exige
do Estado a criação das condições necessárias ao progressivo alargamento do
âmbito da jurisdição administrativa (…), no sentido do reforço das estruturas
da jurisdição administrativa de modo a poder cobrir todo o universo dos
litígios jurídico-administrativos»[14]. É este o ponto de partida: o legislador ordinário deve estar na primeira linha da reforma da justiça administrativa, dotando-a de meios necessários à prossecução da sua actividade. Não deve, por seu turno, excepcionar matérias do seu âmbito de aplicação por uma razão que, diga-se, não é jurídica - é mera "tradição", uma escolha política.
Os Professores citados justificavam o recurso aos
tribunais judiciais para definição do montante indemnizatório em sede de
expropriação por utilidade pública na circunstância de não haver tribunais administrativos
suficientes para assegurar uma proximidade da justiça a todos os cidadãos. Se
esta ideia fazia sentido no período em que apenas existia um Supremo Tribunal
Administrativo, um Tribunal Central Administrativo e três tribunais
administrativos de círculo (Lisboa, Porto e Coimbra), já não faz tanto sentido
hoje, porquanto, para além do STA, o Tribunal Central Administrativo
desdobrou-se em dois (Norte e Sul), e os tribunais administrativos de círculo
passaram a dezasseis (como consta do artigo 3.º do DL 325/2003, de 29 de
Dezembro). Não defendendo que o aumento dos tribunais administrativos de círculo
seja suficiente para assegurar a coesão territorial desejada para que toda a
população tenha acesso à justiça administrativa, a verdade é que existem em número
suficiente para se reequacionar a velha questão: se, com a reforma do
contencioso administrativo, se aumentaram as estruturas decisórias da
jurisdição administrativa, temos que analisar se ainda faz sentido subtrair
certas matérias às mesmas por razão de insuficiência de meios. Com efeito, um alentejano
expropriado já não terá que se dirigir ao tribunal administrativo de círculo de Lisboa
para recorrer do acórdão arbitral que definiu o montante da indemnização;
apenas precisa de se deslocar até Beja.
Não era o nosso objectivo deslocar a questão em análise
para uma discussão sobre organização judiciária e sobre a eficácia da justiça
administrativa. Porém, sendo esse o argumento utilizado, apenas o conseguimos
rebater por essa via: com efeito, o argumento de peso a favor da atribuição da
competência de litígios relativos à definição do montante da indemnização no
caso de expropriação fundamenta-se exclusivamente em questões de organização
dos tribunais administrativos. Aliás, não procedendo, face à legislação em
vigor, o argumento da natureza privada do litígio, o único argumento que resta
é esse. Argumentos de direito processual administrativo não há que justifiquem
essa atribuição, visto que o que está em causa é uma relação jurídica
administrativa, cujo litígio que dessa relação advier compete à jurisdição
administrativa, nos termos do artigo 212.º, n.º 3, da CRP.
José Maria Vilela
[2]
Neste
sentido, v. VIEIRA DE ANDRADE, Justiça
Administrativa – Lições, 14.ª ed., Coimbra: 2015, p. 91.
[3]
MÁRIO ESTEVES
DE OLIVEIRA,
A publicidade, o notariado e o registo públicos de direitos privados, in
Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Rogério Soares, 2001, p. 498., apud
VIEIRA DE
ANDRADE, op. cit., p. 93, nota 164.
[5]
SÉRVULO CORREIA,
O Contencioso Administrativo português, hoje, in Comentários à
legislação processual administrativa, vol. I, Lisboa: 2020, p. 54.
[8]
FREITAS DO AMARAL/AROSO DE ALMEIDA,
Grandes linhas da reforma do Contencioso Administrativo, 3.ª ed.,
Coimbra: 2007, pp. 24-25.
[11]
Em ambos, o juiz de tribunal judicial de comarca recusa-se a aplicar o
então artigo 37.º (actual artigo 38.º, já analisado) do Código das
Expropriações, por ser inconstitucional face ao artigo 212, n.º 3, da CRP,
remetendo o litígio para os tribunais administrativos, sendo, na sua óptica, a competência para
analisar o montante da indemnização por expropriação por utilidade pública uma
competência constitucionalmente reservada aos tribunais administrativos.
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