A ressalva implícita da alínea e) do nº4, art.º 4 do ETAF
A 1 de janeiro de 2004 entrou em vigor a previsão
constitucional dos artigos 209º/1 al. b) CRP competindo aos “tribunais
administrativos e fiscais o julgamento as ações e recursos contenciosos que
tenham por objeto dirimir litígios emergentes das relações jurídicas
administrativas e fiscais” (art.º 212º/3 CRP e art.º 1º/1 ETAF).
Esta concretização não teve o sucesso que se pretendia e veio
a materializar, uma “justiça extremamente lenta, formalística”[1]
e incompetente, potencializadora de graves violações aos direitos e liberdades dos
indivíduos, sendo muitas vezes repensada a existência destes tribunais
administrativos e fiscais em prol de uma unificação judiciária.
Ora, para nós[2],
não obstante o demorado período de adaptação que a justiça portuguesa tem tido
ao longo destes últimos dezasseis anos, dizimar os tribunais administrativos integrando-os
nos cíveis, seria efetivamente um retrocesso garantístico.
Efetivamente, os tribunais cíveis resolvem litígios entre
entidades privadas, quer sejam singulares (ex: o empreiteiro não cumpre com o
prazo acordado com o dono da obra), quer coletivas (ex: uma sociedade instaura
ação de responsabilidade civil contra um dos seus gerentes). Mas, quando surge
um litígio entre um privado e a Administração pública ou qualquer entidade
provida de poderes de autoridade, os interesses prosseguidos pelas partes, em princípio,
não serão paritários. Não se podendo tratar de forma igual aquilo que é
diferente, seria necessário recorrer a pilares diferentes dos que suportam os
tribunais cíveis.
Assim, a reforma de 2004
assegurou o principio da tutela jurisdicional efetiva com a regulação
destes tribunais administrativos, especificando-se, mais tarde, as matérias
sobre as quais se podia debruçar - art.º 4º nº 1 e 2 do ETAF, ficando excluídas
as designadas no art.º 3º e 4º do ETAF[3].
Em particular, a Lei nº.114/2019, de 12-09, ampliou na sua
alínea e) o âmbito da delimitação constante no nº4 do art.º 4º do ETAF,
excluindo-se da competência dos tribunais administrativos e fiscais os litígios
emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos
essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva.
Pretendia-se com esta adição resolver de forma unívoca os
conflitos de competência quando uma das partes se tratava de uma entidade de prestação
e fornecimento de serviços públicos essenciais [4](Lei
nº23/96, de 26 de julho).
Contudo, no acórdão revolucionário de 21 de janeiro de 2014
(proc. n.º 044/13)[6], o
tribunal contrariamente ao que tinha assumido até então, sustentou que o
interesse do fornecedor de serviço não era indiferente.
Em causa estava uma concessionária da exploração de sistema
de captação de água que demandou junto dos tribunais judiciais a condenação da
ré no pagamento de uma certa quantia por via da prestação desse serviço. O Tribunal
judicial de 1ª instância declarou-se incompetente em razão da matéria (declarando-o
também o Tribunal da Relação), chegando ao Tribunal de Conflitos. De uma forma
generalizada este tribunal esclareceu que embora a presença de um ente público ou
a existência de uma taxa possa em certas situações determinar a competência do
tribunal administrativo e fiscal para a resolução de um determinado litígio, há
situações em que isso não se verifica.
Num contrato de
concessão (em que existe uma entidade privada no exercício de poderes
públicos), a relação entre as partes será de direito privado, mais
especificamente um contrato de prestação de serviços (por destinar-se a “prover
as necessidades dos recorridos e não quais fins de interesse público”). Não existe, portanto, uma verdadeira taxa.
Quem refere uma concessionária, refere qualquer órgão
estadual que lhe tenha conferido esses poderes públicos. Porquê? É de notar que
apesar de existirem disposições regulamentares de direito público que se
destinam a explicitar e densificar o
regime dos serviços de fornecimento de água, eletricidade,… (de todos os vistos
como serviços essenciais[7]),
a ideia a ter-se em conta é a de que o utente é, sobretudo, um consumidor e deve
ser tutelado como tal. A “Lei nº 23/96 eliminou todos os vestígios de poderes
autoritários do fornecedor, substituindo-os por regras de proteção do utente.”[8]
Independentemente da natureza pública do credor,
o que importa é o fim visado pelo próprio contrato, o encontro de vontade de
partes. Os tribunais competentes, desta forma, seriam os judiciais.
A confusão poderá surgir não no campo de apreciação de litígio
sobre o incumprimento dos contratos, mas no da possibilidade de execução coerciva
através do processo de execução fiscal[9],
de dívidas emergentes desses contratos por parte de entidades públicas nos
termos do CCPT. Se uma das partes for um município ou uma empresa a quem tenham
sido delegados poderes de autoridade, estes poderão emitir uma certidão de divida ao
privado, seguindo-se o processo de execução fiscal regulada por normas de
direito administrativo.
Então, primeiro determina-se que os tribunais competentes são
os judiciais (em consequência da relação controvertida ser de consumo), mas depois conclui-se que estes terão de aplicar normas administrativas sem o domínio e
especialização na matéria porque uma das partes é pública?[10]
É de facto problemático. A alínea
e), tal como está redacionada, atenta contra a segurança da contraparte, uma vez que faz
depender da natureza e poderes do credor para definir como é que tribunal
competente resolverá certo litígio.
Uma solução seria proceder-se a uma alteração do art.º 103º
LGT, art.º 10º/1 al. f) CCPT e o art.º 12º/2 RGTAL, retirando-se o poder das
entidades públicas de desencadearem o processo de execução fiscal que se
destina à liquidação e cobrança de dívidas por falta de pagamento dos serviços
essenciais. É, contudo, algo radical.
No nosso entendimento, de forma a colmatar a incerteza e a restringir a jurisdição [11] administrativa eficazmente, o legislador deveria simplesmente aprimorar o sentido do art.º 4º/4 al. e) do ETAF no sentido de os tribunais administrativos não decidirem sobre os litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva quando efetuada por entidade privada.
Se essa cobrança fosse feita por entidade pública ou houvesse um vício procedimental/material na fixação dos valores a cobrar, as normas a aplicar seriam de direito administrativo.
Fugiam estes casos do nº4 para o nº1 do ETAF.
Aluna: Aylén Arancibia
Nº58369
[2] N
[3]
[4]
[5]
[7] Art.º1º, nº2 da Lei 23/96, de 26 de Julho
[8]
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