Alínea i) do art. 4º do ETAF: uma visão global

A Teoria da Via de Facto é uma teoria criada pela jurisprudência francesa, tendo depois sido adotada em  Portugal. A “via de facto” consubstancia “uma ação material da Administração, instantânea ou duradoura, que, sem base legal[1], ofenda de forma grave e manifesta uma liberdade fundamental ou um direito de propriedade- quer consista no exercício de uma actividade ilícita ou não execução ilícita de um ato[2]. Quando um Órgão Administrativo atua do modo supra descrito, este é equiparado a um particular, equiparação que permite, sem pôr em causa a separação de poderes, que os tribunais judiciais possam intervir no domínio da Administração.

O recurso a esta teoria justificou-se até à Reforma da Legislação Processual Administrativa de 2002/2004, dado que até então o Contencioso Administrativo não permitia obstar aos comportamentos materiais da Administração.

Após a Reforma supra aludida, os Tribunais Administrativos passaram a ter “poderes condenatórios plenos”[3] e abriram-se à “sindicância de toda a panóplia de atuações administrativas.”[4] Posto isto, a teoria em apreço deixa então de fazer sentido, dado ser o seu principal objetivo permitir à jurisdição comum o julgamento destes litígios.[5]

Todavia, quer os Tribunais Comuns, quer os Administrativos continuaram a prolatar sentenças aludindo à mencionada Teoria, obrigando o legislador, na Reforma do ETAF de  2015, a aditar uma nova al.i) ao art. 4º do ETAF.

Ainda assim,  a determinação da jurisdição competente para julgar a causa, dependerá sempre do modo como o Autor configurar o Pedido.

            Importa agora o seguinte esclarecimento: o conceito de “via de facto” abrange as seguintes situações: (1) a atuação material da Administração não legitimada por nenhuma decisão prévia; (2) a prática de um ato jurídico existente na ordem jurídica pela Administração, mas que enforma uma ilegalidade grave; (3) a não atribuição pela lei à entidade administrativa de competência material.

            É de salientar então, a redundância e o perigo de interpretação restritiva do conceito de “via de facto”, a que expressão “sem título que as legitime” nos conduz. Defendemos pois, que se faça uma interpretação ampla do conceito, compreendendo todos os casos acima mencionados, tal como nos indica JORGE PAÇÃO.

            Tem-se questionado se as situações de natureza similar à “via de facto” como a “apropriação irregular” e “ a expropriação indirecta[6] ficam mais próximas de serem julgadas por tribunais administrativos. A apropriação irregular”,  “caracteriza-se por uma tomada de posse por parte da Administração de um bem imóvel que enferma de uma ilegalidade (…) simples e leve”.[7] Já a “expropriação indirecta” pode ser ilustrada segundo o seguinte exemplo: construção pela administração pública de uma obra pública de forma irregular num terreno não lhe pertencente. Nestes casos chama-se então à colação o principio da intangibilidade da obra pública[8].

JORGE PAÇÃO defende que com a Reforma de 2015, fica reforçada a ideia de que os tribunais administrativos são tribunais competentes para a apreciação das situações de via de facto, de “apropriação irregular e de expropriação indirecta, quer por interpretação extensiva da alínea i), quer por aplicação direta da alínea o) do nº1 do artigo 4º do ETAF.[9]

Na nossa mais humilde opinião, sufragamos o entendimento que se deve fazer uma interpretação extensiva da alínea i), colhem para nós os argumentos de JORGE PAÇÃO (infra nota 9). Sendo que para além disso, sujeitar o problema em questão à jurisdição administrativa permite que o particular veja, quando caso disso, a sua situação natural restituída. Resta-nos a dúvida se em sede de jurisdição administrativa, ser recorrerá ao critério do interesse público, que subjaz ao principio da obra pública e caso a resposta seja afirmativa, se a Administração não usará de subterfúgios manipuladores para o preenchimento do conceito de interesse público.

 

                                                   Maria Inês Correia Duarte Vila Boa-58305


 

 

 

[1] Sem existência de uma lei, regulamento ou contrato que legitime tal atuação.

[2] JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, A “via de facto” perante o juiz administrativo- Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul (2º Juízo) de 22.11.2012, P. 5515/09 in Cadernos de Justiça nº104, Braga, Empresa do Diário do Minho Lda. (março/abril 2014),  p.43

[3] CARLA AMADO GOMES, “Via de facto” e tutela jurisdicional contra ocupações administrativas sem título in Revista do Ministério Público nº150, s/l, s/ed, (junho de 2017), p.93

[4] Ob. Cit. CARLA AMADO GOMES (junho de 2017), p.93

[5] Neste sentido JORGE PAÇÃO

[6] Espécie de ramificação da “apropriação irregular

[7] FERNANDO ALVES CORREIA, As garantias dos particulares na expropriação de utilidade pública, Coimbra, Gráfica de Coimbra (1982) p. 175

[8] Que se materializa  no seguinte: devido à importância que a obra tem para o interesse geral, nem os juízes dos tribunais administrativos, nem dos tribunais comuns podem mandar destruir a obra, apenas concedendo ao particular uma indemnização, ficando este impedido de intentar uma ação de restituição da posse. 

[9] Baseando-se nos seguintes argumentos, que apresentaremos de forma sumária: a aplicação do principio da intangibilidade da obra pública fica melhor entregue aos tribunais administrativos; as situações que se escapam ao conceito tradicional de via de facto não deixam de ser constitutivas de verdadeiras relações jurídico administrativas (estando as mesmas “entregues” à jurisdição dos tribunais administrativos) e o grau de gravidade dos vícios ou desvalores jurídicos dos atos praticados pela administração não consubstancia critério idóneo à determinação da jurisdição competente.


BIBLIOGRAFIA: 

CARLA AMADO GOMES, “Via de facto” e tutela jurisdicional contra ocupações administrativas sem título in Revista do Ministério Público nº150, s/l, s/ed, (junho de 2017), p.89-94

FERNANDO ALVES CORREIA, As garantias dos particulares na expropriação de utilidade pública, Coimbra, Gráfica de Coimbra (1982) p.172-175

JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, A “via de facto” perante o juiz administrativo- Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul (2º Juízo) de 22.11.2012, P. 5515/09 in Cadernos de Justiça nº104, Braga, Empresa do Diário do Minho Lda. (março/abril 2014),  p.43-46

JORGE PAÇÃO, “Novidades em sede de jurisdição dos tribunais administrativos- em especial, as três novas alíneas do art. 4º nº1 do ETAF” in Comentários à Revisão do ETAF e do CPTA, Lisboa, AAFDL (2017), p. 321-335

JORGE PAÇÃO, “O âmbito da jurisdição administrativa e considerações renovadas sobre as alíenas i), l) e n) do nº1 do art. 4º do ETAF” in Comentários à Legislação Processual Administrativa, vol 1, 5º Ed, Lisboa, AAFDL (2020), p. 388-396


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