A Reserva constitucional no Âmbito da Jurisdição Administrativa

 

Âmbito de Jurisdição Administrativa

A reserva constitucional

 

De um ponto de vista orgânico a justiça administrativa compreende a resolução das questões de Direito Administrativo que sejam atribuídas à ordem judicial dos tribunais administrativos. O que vem ter influência na determinação do âmbito da jurisdição administrativa.

Questiona-se qual o alcance material da justiça administrativa, cuja resposta podemos encontrar: na Constituição da República; em legislação ordinária, como o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), que contém as regras gerais de competência dos tribunais administrativos; legislação especial, que em certas matérias poderá conter normas que poderão significar a atribuição ou subtração relativamente às competências comuns; e o Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA).[1]

Iremos focar-nos nas normas constitucionais, mais especificamente na discussão relativa à reserva constitucional presente no artigo 212º\3 CRP.

A reserva constitucional

O Art.º 212 é alusivo aos tribunais administrativos e fiscais. O nº 3 deste artigo refere, “Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.

O quesito central relativo a este preceito foca-se no conceito “…litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais” (reafirmado no Art. 1º do ETAF), que resulta num problema de interpretação, e na questão de saber se este preceito configura uma reserva material absoluta de jurisdição atribuída aos tribunais administrativos.

Tem-se debatido, quer na doutrina, quer na jurisprudência, se tal reserva é absoluta, quer num sentido negativo, implicando que os tribunais administrativos só poderão julgar questões de Direito administrativo, quer no sentido positivo, em que só os tribunais administrativos poderão julgar nessa matéria.[2]

Para parte da doutrina resulta da constituição uma reserva perante a qual o legislador não pode atribuir a outros tribunais o julgamento de litígios materialmente administrativo, o que corresponderia a uma natureza absoluta (fechada) da reserva material. Só será aceitável a devolução de competência em matéria administrativa para outros tribunais (judicias) que forem previstas a nível constitucional.[3]

MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA[4], defende a devolução em casos de Estado de necessidade, admitindo uma interpretação com base num elemento experimental, de atribuição a outros tribunais do conhecimento de litígios administrativos quando e na estreita medida em que seja praticamente impossível o cumprimento da reserva.

Contudo, tem-se vindo a defender a natureza relativa desta reserva, esta posição, que nos parece mais razoável, foi sufragada pelo Supremo Tribunal Administrativo, pelo tribunal de conflitos e pelo Tribunal constitucional. Esta posição não lê este preceito constitucional como um imperativo estrito, como contendo uma proibição absoluta, mas sim uma regra que vem definir um modelo típico, suscetível de desvios e adaptações, desde que se preserve o núcleo essencial.[5] Podemos ver esta ideia na exposição de motivos da proposta de lei que deu origem à ETAF em 2002: “ A existência de um modelo típico e de um núcleo próprio da jurisdição administrativa e fiscal não é incompatível com uma certa liberdade de conformação do legislador, justificada por razões de ordem prática, pelo menos quando estejam em causa domínios de fronteira, tantas vezes de complexa resolução, entre o direito público e o direito privado.”[6]

Esta tese sufraga a ideia de que a finalidade principal do preceito introduzido na revisão constitucional de 1989 era de consagrar a ordem judicial administrativa como jurisdição própria ordinária, e não uma jurisdição especial ou extraordinária em face dos tribunais judiciais. Podemos ver esta ideia consolidada no Acórdão recente, nº 218\07.

Esta definição de um âmbito-regra deve ser entendida como uma garantia institucional, da qual deriva a necessidade, para o legislador ordinário, de respeitar o núcleo essencial da organização material das jurisdições - Ou seja, o que se proíbe é a descaracterização da jurisdição administrativa, enquanto jurisdição própria.

A jurisdição administrativa passa a ser a jurisdição comum para o conhecimento de litígios emergentes de relações jurídico administrativas, servindo assim o 212º\3 para delimitar o sentido da parte final do 211º\1 CRP, que atribui aos tribunais judiciais uma competência residual. Uma questão de natureza administrativa passa a pertencer à ordem jurisdicional administrativa.

O que não quer dizer que o legislador ordinário não possa residualmente atribuir competência para conhecimento de litígios administrativos a tribunais não administrativos, desde que exista um desvio com um fundamento materialmente razoável, e que não se esvazie o núcleo essencial da competência dos tribunais administrativos.[7]

Concluímos então que o objetivo do Art.º 212º\3 CRP não é de consagrar uma reserva material absoluta, mas sim de autonomizar a ordem jurisdicional administrativa enquanto jurisdição comum em matéria administrativa. O âmbito da jurisdição administrativa e fiscal é definido em função da qualificação dos litígios como emergentes de relações jurídicas administrativas. Existindo casos em que o legislador atribui competência a outras jurisdições, como podemos ver, por exemplo, no número 2 e 3 do artigo 4º do ETAF.


Jurisprudência:

- Acórdão TCAS, 07127\11, 23\03\2011

- Acórdão STJ, 1203\12.0TBPTL.G1.S1

- Acórdão nº 764\96

- Acórdão nº 218\07

 

Bibliografia:

- José Carlos Vieira de Andrade, “A Justiça Administrativa (lições)”, 10ª edição, Almedina

- Maria Helena Barbosa Ferreira Canelas, “A Amplitude de Competência Material dos Tribunais Administrativos Em Sede De Relações Relativas A Responsabilidade Civil Contratual”

- GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, in Constituição Anotada, 3.ª Ed., 1993

- Mário Esteves de Oliveira, “A Publicidade, o Notariado e o Registo Público de Direitos Privados”, in Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Rogério Soares, 2001

 

Sofia Duarte Tavares

Nº 58418

Subturma 5, TA



[1] José Carlos Vieira de Andrade, “A Justiça Administrativa (lições)”, 10ª edição, Almedina

[2] Maria Helena Barbosa Ferreira Canelas, “A Amplitude de Competência Material dos Tribunais Administrativos Em Sede De Relações Relativas A Responsabilidade Civil Contratual”

[3] GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, in Constituição Anotada, 3.ª Ed., 1993

[4] Mário Esteves de Oliveira, “A Publicidade, o Notariado e o Registo Público de Direitos Privados”, in Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Rogério Soares, 2001

[5] José Carlos Vieira de Andrade, “A Justiça Administrativa (lições)”, 10ª edição, Almedina

[6] Publicada in, Reforma do Contencioso Administrativo, vol. III, p. 13 ss., Coimbra Editora, 2003.

[7] Entendimento adotado pelo Tribunal Constitucional, designadamente no Acórdão nº 764\96.

 

 

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