Arbitragem administrativa portuguesa: Um caso de desjuridificação?
Arbitragem administrativa portuguesa: Um caso de desjuridificação?
Hodiernamente, a justiça não se encontra apenas nos tribunais do Estado. O recurso à arbitragem, através de tribunais arbitrais, afirma-se útil tanto para as partes processuais como para o interesse público, na medida em que contribui para ultrapassar a morosidade processual provocada pelo recurso constante e, muitas das vezes, descabido, aos tribunais estaduais1.
A possibilidade de recurso à arbitragem em matéria administrativa já se encontrava prevista desde 1984, na então vigente versão do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (doravante ETAF). Não obstante, só aquando da reforma do Código de Processo dos Tribunais Administrativos (doravante CPTA) em 2002-2004, com a ampliação do âmbito da arbitrabilidade administrativa, é que as discussões relativamente à arbitragem administrativa ganharam um novo fôlego2.
O regime estabelecido para a arbitragem tributária difere do consagrado para a arbitragem relativa a matérias administrativas, desde logo o facto de que o legislador, para a primeira, ter optado por elaborar um regime arbitral próprio, enquanto que relativamente à segunda, a arbitragem administrativa, consagrou algumas normas-base e remeteu tudo o resto para a Lei de Arbitragem Voluntária (doravante LAV).
Este é, efetivamente, um dos problemas do regime da arbitragem administrativa e que dá corpo ao presente texto. Ora, por um lado, temos um cenário de constantes remissões do CPTA para a LAV e, por outro, um exagero de regras especiais relativas a esta matéria3. Como descreve, e bem, a Professora ISABEL CELESTE FONSECA, a LAV é insuficiente no que toca a fornecer soluções para os problemas suscitados em matéria de arbitragem administrativa e, em vários momentos, a LAV é afastada por regras especiais havendo “muitas disposições legais especiais a prever a arbitragem administrativa, integrando muitas, diversas e por vezes ininteligíveis soluções, sendo certo que tais diplomas acolhem normas pouco amigas do direito fundamental de acesso aos tribunais”4.
Dito isto, fica a questão sobre se faz mais sentido uma alteração ao regime da arbitragem administrativa do CPTA ou, se por sua vez, tem mais cabimento proceder-se à criação de um novo regime de arbitragem administrativa, à semelhança do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária5.
É certo que uma das peculiaridades inerentes da arbitragem, e talvez a mais atrativa, consiste no facto de caber às partes o acordo sobre as regras processuais. No entanto também é certo que estamos perante arbitragem administrativa e, sendo assim, não nos podemos olvidar do valor norteador de toda a ação administrativa: o interesse público. Estando perante matérias que podem chocar com o interesse público, as regras processuais não podem ficar totalmente à mercê dos intervenientes processuais, como poderia acontecer caso o litígio ocorresse exclusivamente entre privados.
É notório que o quadro jurídico atual não é suficiente, nem adequado, para regular a arbitragem administrativa. Ora, a LAV foi desenvolvida por uma lógica de autorresponsabilidade das partes, onde estas, ao abrigo da sua autonomia privada, podem abdicar de certas formalidades, de forma a obter uma decisão em tempo útil6. A Administração, por sua vez, “enquadra-se numa posição jurídico-institucional, onde a lógica da autorresponsabilidade e da autonomia privada perdem o seu sentido útil”7.
Estas questões já não se colocam ao nível da arbitragem tributária, pois o Regime Arbitral Tributário consagra, expressamente, regras e princípios próprios adequados às particularidades específicas destas matérias.
À semelhança do direito tributário, também a arbitragem administrativa carece de um regime arbitral próprio que acautele a garantia de um processo equitativo e os interesses públicos em causa. A arbitragem não pode ser sinónimo de desjuridificação.
1 MANUEL SANTOS SERRA, Breves notas sobre a Arbitragem Administrativa e Tributária, Newsletter CAAD, fev. 2013, disponível em: www.caad.pt.
2 ISABEL CELESTE FONSECA, A Arbitragem na Contratação Pública em Portugal: Uma realidade com futuro?, pág 2, Disponível em: https://core.ac.uk/download/pdf/61904309.pdf
3 ISABEL CELESTE FONSECA, A Arbitragem ... cit., pág 2.
4 ISABEL CELESTE FONSECA, A Arbitragem... cit., pág. 2.
5 Regime jurídico da arbitragem tributária aprovado pelo DL n.º 10/2011, de 20 de Jan.
6 SUHEIL MAHOMED SALÉM, Arbitragem Administrativa: o papel conferido ao Ministério Público no processo arbitral, Revista Eletrónica de Direito Público, Vol.3, n.o2, 2016, pág 5.
7 SUHEIL MAHOMED SALÉM, Arbitragem... cit., pág 5-6.
Inês Santos
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