Breve análise das alíneas f) e h) do artigo 4º, n.º 1 do ETAF

Nos termos da alínea f) do artigo 4º, n.º 1 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), é da competência da jurisdição administrativa apreciar todas as questões de responsabilidade civil extracontratual emergentes das condutas de pessoas coletivas de direito público[1] - verifica-se, assim, uma competência genérica[2]. A norma em apreço refere, expressamente, a responsabilidade civil extracontratual por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa e jurisdicional, mas nem sempre foi assim, visto que, a referência expressa a danos resultantes do exercício da função política apenas foi inserida com a revisão de 2015 do ETAF. Até 2015, a ausência de uma menção expressa à função política suscitou várias dúvidas relativamente à interpretação da então alínea g) do artigo 4.º, n.º 1 (hoje, alínea f)). Estaria a responsabilidade do Estado pelo exercício da função política sujeita à apreciação dos tribunais judiciais (e não dos tribunais administrativos) até à revisão de 2015 do ETAF? Tal entendimento só seria possível caso a norma em análise fosse interpretada de forma literal. No entanto, como se referiu, verifica-se no preceito uma competência genérica dos tribunais administrativos para apreciar todas as questões de responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público e essa competência genérica já o era antes da revisão de 2015. Defendendo a inclusão da responsabilidade da função política no âmbito da jurisdição administrativa, o Prof. Vasco Pereira da Silva invocou a “similitude de características materiais das funções política e legislativa”[3] e considerou a referência às funções legislativa e jurisdicional como meramente exemplificativa. É difícil não concordar com o argumento relativo à similitude existente entre as funções política e legislativa, visto que, cada vez mais, se verifica uma estreita conexão entre as duas funções, sendo, nos dias de hoje, o procedimento legislativo apenas mais uma forma de fazer política, o que dá muitas vezes azo a grosseiros erros na feitura das leis, ambiguidades, e incoerências. Assim, conclui-se que a responsabilidade civil extracontratual por danos resultantes do exercício da função política fazia, tal como hoje faz, parte do âmbito da jurisdição administrativa. A referência expressa à função política veio apenas tornar claro algo que, na verdade, já o era, menos para aqueles que se recusam a ver, talvez por conveniência ou comodidade, para lá das palavras escritas na lei. Outro ponto de destaque a ter em conta no artigo 4.º, n.º 1, alínea f) do ETAF é a abolição da relevância processual da distinção entre atos de gestão pública e atos de gestão privada, com a reforma de 2002/2004 do Contencioso Administrativo. Como referido no Acórdão[4] do STJ de 01-03-2018 “com a Reforma do Contencioso Administrativo[5], alterou-se, no âmbito da responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, o critério determinante da competência material entre jurisdição comum e jurisdição administrativa, que deixou de assentar na clássica distinção entre atos de gestão pública e atos de gestão privada, passando a jurisdição administrativa a abranger, por um lado, todas as questões de responsabilidade civil que envolvam pessoas coletivas de direito público, independentemente da questão de saber se tais questões se regem por um regime de direito público ou por um regime de direito privado.”. No entanto, a distinção entre atos de gestão pública e atos de gestão privada continua a ter relevância no plano substantivo, como se pode ver no artigo 1º do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado (RRCEE), aprovado pela Lei n.º 67/2007.

Passando à análise da alínea h) do artigo 4.º, n.º 1 do ETAF, dela se retira que, é da competência dos Tribunais Administrativos a apreciação de litígios que tenham por objeto a responsabilidade civil extracontratual de sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público, circunstância que se verificará sempre que, nos termos previstos no artigo 1.º, n.º 5 do RRCEE, os atos ou omissões praticados por sujeitos privados e causadores de danos sejam adotados “no exercício de prerrogativas de poder público” ou “sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo[6]. Aqui, ao contrário do que se verificou na alínea f), ganha relevância, não apenas no plano substantivo, mas também, no plano processual[7], a difícil distinção entre atos de gestão pública e atos de gestão privada. Com efeito, relativamente às entidades privadas, apenas a responsabilidade civil extracontratual emergente das atuações de gestão pública, ou seja, aquelas atuações que exprimem o exercício de “prerrogativas de poder público” ou se regem por “disposições ou princípios de direito administrativo”, são reguladas pelo RRCEE e, por isso, caem no âmbito da jurisdição administrativa.


Rodrigo Agostinho

 N.º de aluno: 56902


[1] “Pessoas coletivas criadas por iniciativa pública, para assegurar a prossecução necessária de interesses públicos e, por isso, dotadas em nome próprio de poderes e deveres públicos.” – Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo I, 4.ª Edição, Almedina, 2015, págs. 618-619

[2] Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, 4.ª Edição, Almedina, 2020, pág. 175

[3] Vasco Pereira da Silva, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2.ª Edição, Almedina, 2009, pág. 528

[4] Processo n.º: 1203/12.0TBPTL.G1.S1, Relatora: Rosa Tching

[5]  Operada pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro.

[6] Conforme o Acórdão do STJ de 08-10-2015, Processo n.º: 1085/14.8TBCTB-A.C1.S1, Relatora: Maria Clara Sottomayor

[7] A relevância processual prende-se com o facto de, o referido n.° 5 do artigo 1.º da Lei n.° 67/2007, indicar as situações em que as entidades privadas poderão ser submetidas a um regime de responsabilidade administrativa e, consequentemente, poderão ser demandadas perante os tribunais administrativos em ações de responsabilidade civil, nos termos do referido art. 4.°, n.° 1, al. h), do ETAF. 

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