Comentário ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26-mar.-2019 Proc. n.º 2468/15.1T8CHV-A.G1.S1
No Acórdão em análise, o Município de --- deduziu oposição à execução comum para pagamento de uma certa quantia, que lhe moveu a Santa Casa da Misericórdia de ---. A Exequente contestou a oposição defendendo a exequibilidade. Realizou-se a audiência de julgamento, tendo sido proferida sentença que julgou improcedentes os embargos, determinando, consequentemente, o prosseguimento da execução. Não se conformando com esta decisão, o Executado Município de --- interpôs recurso de apelação. O Tribunal da Relação veio conceder provimento ao recurso, revogando a decisão impugnada. Inconformada com tal decisão, a Exequente Santa Casa da Misericórdia de --- interpôs recurso de revista referindo, em resumo, que a relação jurídica em causa resultante do protocolo celebrado entre si e o executado é regulada pelo Direito Civil e não pelo Direito Administrativo. Assim, perante uma relação jurídica regulada pelo direito civil seriam os Tribunais Judiciais os competentes para decidirem o litígio.
Está em causa averiguar se a competência para apreciar e julgar esta execução pertence à jurisdição administrativa ou à jurisdição comum e, no caso, tanto o Acórdão recorrido como o Acórdão em análise, entenderam ser de deferir a competência aos tribunais administrativos considerando que, na altura, uma das competências das Câmaras Municipais era a de celebrar protocolos com entidades que desenvolvessem atividades de prestação de serviços a estratos sociais desprotegidos, estando, pois, em causa uma relação jurídica regulada, sob o ponto de vista material, pelo Direito Administrativo e portanto correspondente ao âmbito de jurisdição dos tribunais administrativos.
Ora, se nos referimos ao âmbito de jurisdição dos tribunais administrativos, é também necessário abordar sobre o que incide a competência dos mesmos e, nesta senda, estabelece o artigo 212.º n.º3 CRP que compete “aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais”. Também o artigo 1º ETAF refere que os “tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais (…)”. Assim, o que devemos entender por este tipo de relações? De facto, a doutrina tem dado várias definições do conceito sendo que considero adequada a oferecida pelo professor Mário Aroso de Almeida. O professor afirma que “as relações jurídico-administrativas não devem ser definidas segundo o critério estatutário, reportado às entidades públicas, mas segundo um critério teleológico, reportado ao escopo subjacente às normas aplicáveis”. Isto é o mesmo que dizer que são relações jurídicas administrativas as que resultam de atuações materialmente administrativas, praticadas por órgãos da Administração Pública ou, eventualmente, por particulares no exercício da função administrativa (conceito material de atividade administrativa). É, portanto, em função deste conceito de relação administrativa que as várias alíneas do artigo 4.º do ETAF (que se refere ao âmbito de jurisdição dos tribunais administrativos) devem ser interpretadas.
Sabemos que o âmbito da jurisdição é uma questão essencial na medida em que o contencioso deve corresponder ao domínio da função administrativa. Assim, atualmente, para regular todos os litígios administrativos é necessário um “contencioso amplo”. A lógica portuguesa até 2002/2004 divergia. De facto, segundo o professor Vasco Pereira da Silva, regulava-se sobretudo o “contencioso do poder”, o contencioso dos atos decisivos executórios, sendo que neste ETAF (o atual), o legislador terá consagrado a abertura do contencioso em função da transformação da realidade administrativa, tendo a Administração Pública assumido nova forma de atuação, forma de atuação esta que também se terá complexificado. Ora, o artigo 4º ETAF estabelece a título exemplificativo o que são essas relações jurídico-administrativas, utilizando vários critérios de qualificação.
No Acórdão em análise releva a alínea e) do mesmo artigo: “validade de atos pré contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes”. Porquê? Por estar em causa uma “execução referente ao incumprimento de um contrato administrativo perante uma relação contratual estabelecida entre um ente público (uma autarquia local) e uma instituição particular de solidariedade social”, pelo que o enquadramento a fazer deve ter em conta as disposições do ETAF que regulam a matéria contratual, nomeadamente, a alínea e) do artigo 4º ETAF. Esta alínea adota vários critérios. De facto, o ETAF complementa o critério da natureza administrativa do contrato do qual emerge o litígio com o critério da submissão a regras de contratação pública. Assim, segundo o professor Mário Aroso de Almeida, temos: Critério do Contrato Administrativo – contratos que apresentam notas de administratividade, seja por natureza, por determinação da lei ou por qualificação das partes (280º1 CCP); Critério do Contrato Submetido a regras de Contratação Pública – contratos celebrados por pessoas coletivas de direito público ou por entidades privadas quando sujeitas a regras de direito público em matéria de procedimentos pré-contratuais. Ora, neste caso, podemos aplicar o primeiro critério na medida em que o contrato em questão é submetido ao regime do Direito Administrativo em razão da natureza pública do seu objeto e do seu fim (como já dito anteriormente, uma das competências das Câmaras Municipais era a de celebrar protocolos com entidades que desenvolvessem atividades de prestação de serviços a estratos sociais desprotegidos).
Dito isto, e já enquadrada a situação nesta alínea e), esta é uma norma com a qual o professor Vasco Pereira da Silva não simpatiza na medida em que o legislador utiliza a formulação de contratos administrativos quando em 2004 não existia essa enunciação (o que se dizia no ETAF em 2004 era que contratos exercidos na função administrativa eram objeto de contencioso administrativo). Assim sendo, na opinião do professor, o critério é uma distinção “esquizofrénica”. Na verdade, nesta alínea e), o legislador ao referir-se aos contratos administrativos e a todos os outros regidos pela contratação pública, aponta para que todos os contratos públicos sejam da competência do tribunal administrativo. Sendo este um contrato público, estamos perante competência do tribunal administrativo.
Bibliografia e Consulta:
-Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, 4ª Edição, Almedina
-Mário Aroso de Almeida, O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, 4ª Edição, Almedina
-Vasco Pereira da Silva, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise – Ensaio sobre as Acções no Novo Processo Administrativo, 2ª Edição, Almedina
-Aulas Teóricas do Professor Vasco Pereira da Silva
Mariana Van Ossenbruggen, n.º 58455
4º ano, Subturma 5
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