Da Preterição do Tribunal Arbitral Voluntário no Âmbito do Atual CPTA
A possibilidade recurso aos tribunais arbitrais vem desde logo constitucionalmente prevista no artigo 209.º que, no seu n.º 2, admite a possibilidade de constituição dos mesmos, havendo também que atentar ao disposto no artigo 212.º, n.º3, enquanto garantia de que o legislador não pode descaracterizar a atividade jurisdicional, e nesse sentido, esta última disposição deverá ser lida de harmonia com a primeira, no sentido de que os tribunais administrativos, em Portugal, não se resumirão àqueles estaduais permanentes, estando, assim, igualmente abarcados os tribunais arbitrais administrativos que surjam de modo a dirimir os conflitos neste âmbito [1].
No que toca à legislação processual administrativa, vem também prevista esta possibilidade de recurso aos tribunais arbitrais, nos termos dos artigos 180.º e seguintes do Código de Processo dos Tribunais Administrativos (doravante, CPTA). A Lei de Arbitragem Voluntária, Lei n.º 63/2011, ou LAV, é também frequentemente chamada à colação, apesar da sua fraca aplicabilidade à jurisdição arbitral administrativa, sendo que como um Código de Processo Civil (CPC), do qual apenas aproveitam ao Direito processual administrativo algumas escassas disposições.
A constituição destes tribunais arbitrais surge, então, neste patamar, como um meio para dirimir litígios de Direito Administrativo, respeitantes a “interpretação, validade ou execução do contrato e a Constituição e responsabilidade civil por danos causados pela administração no âmbito da sua atividade de gestão pública”[2]. Segundo Ana Fernanda Neves[3] “o espaço da arbitragem” tem, no fundo, por base, a autonomia de decisão de como conformar a relação jurídica entre os seus intervenientes. E é precisamente na autonomia das partes que se baseia (na maioria dos casos), o recurso à arbitragem — geralmente por via de cláusula compromissória ou compromisso arbitral.
Então, qual a solução para os casos em que é preterida esta convenção celebrada entre as partes em litígio, sendo, em caso de litígio, interposta ação em tribunal administrativo estadual? Mais concretamente, a questão que se coloca é a se saber qual o regime aplicável à exceção dilatória que derive da preterição da convenção de arbitragem celebrada entre as partes em litígio. Esta preterição ocorrerá quando as partes se tenham vinculado ao recurso a juízes arbitrais, sendo, posteriormente, a ação referente a um qualquer litígio emergente interposta em tribunal estadual, que não terá competência enquanto vigorar — e de forma válida — esta mesma convenção.
Nos termos do artigo 89.º, n.º2 CPTA, todas as exceções dilatórias serão de conhecimento oficioso, ou seja, não estarão dependentes da arguição por parte das partes processuais, neste caso, por parte do réu na sua contestação. No entanto, e como bem observamos, no âmbito do CPC, subsidiariamente aplicável ao processo administrativo por via da remissão efetuada pelo artigo 1.º CPTA, o seu artigo 578.º, em conjugação com o anterior do mesmo diploma, revelam que, neste território as exceções dilatórias serão de conhecimento oficioso, com a exceção, entre outras, “da preterição de tribunal arbitral voluntário”.
Neste sentido, cumprirá averiguar qual a solução mais adequada, de modo a que o julgador, confrontado com esta situação, se possa corretamente posicionar.
Como é bom de se notar, referem LEBRE DE FREITAS e ISABEL ALEXANDRE[4], a regra do conhecimento oficioso de exceções dilatórias constitui uma manifestação do princípio jura novit curia, plasmado no artigo 5.º, n.º3 CPC, e segundo o qual “o juiz não está sujeito a alegações das partes no que respeita à indagação, interpretação e aplicação da norma de direito, seja ela de direito substantivo ou processual”. Dependerá assim do juiz constatar a existência da eventual exceção dilatória verificada e retirar dela a consequência adequada.
A especificidade deste caso em concreto liga-se precisamente, estamos em crer, com a possibilidade de conhecimento por parte do juiz desta cláusula ou compromisso. Se optarmos pela via do conhecimento oficioso, não terá o réu ao seu dispor a possibilidade de excecionar nestas situações, o que tornará a sua posição precária — este havia acordado com a outra parte em litígio uma determinada forma para a sua composição que não é depois possível de executar, no caso de vigorar o previsto no artigo 89.º, n.º2 CPTA.
É neste sentido que adotamos o posicionamento tomado por MÁRIO AROSO DE ALMEIDA[5], que defende que as consequências aplicáveis serão as previstas no regime processual civil, ou seja, no Código de Processo Civil, nos seus artigos 577.º e 578.º, precisamente por via da remissão estabelecida pelo artigo 1.º CPTA. Segundo o autor, a exceção dilatória deste tipo, que derive do desrespeito pela convenção de arbitragem não é de conhecimento oficioso, pelo que depende de alegação de parte. Colhe entre nós esta argumentação, tendo também por base o que referimos acima: tendo o conhecimento oficioso por base o cumprimento do princípio jura novit curia, segundo o qual cabe ao juiz interpretar e aplicar o direito, não faria sentido que o mesmo se dissesse de matérias que não se circunscrevam ao direito material ou até processual, sendo antes convenções celebradas pelas partes no âmbito da sua autonomia.
Apesar desta possível divergência, a maioria da jurisprudência acaba justamente por aplicar por remissão o regime processual civil aos casos de preterição de convenção arbitral, e, a nosso ver, bem.
Este é um problema sobretudo (ou totalmente) de relevância processual na medida em que, substantiva e materialmente, o seu impacto será baixo ou até nulo. Efetivamente, as possibilidades são duas: 1) não sendo a exceção dilatória de conhecimento oficioso, o que nos parece fazer mais sentido, e não invocando o réu esta mesma exceção na contestação, então será de concluir que este não terá já interesse na composição do litígio a nível arbitral, e poderá este ter lugar num tribunal administrativo estadual, sendo que se excepcionar se tornará clara a sua vontade de composição do litígio em tribunal arbitral; 2) sendo a exceção de conhecimento oficioso, torna-se um pouco mais conturbada a resposta, na medida em que, não só é essa possibilidade dogmaticamente questionável, como expusemos já acima, mas coloca também problemas de aplicabilidade prática no que toca ao efetivo conhecimento por parte do juiz da existência de uma tal cláusula, impossibilitando posteriormente que o réu, na sua contestação, proceda a excecionar.
Exposta a questão deste modo, parece clara qual a opção a tomar, encontrado-nos assim também de harmonia com o projeto de lei para uma futura Lei de Arbitragem Administrativa Voluntária (LAAV)[6], que prevê uma alteração do artigo 89.º, n.º2 CPTA[7] de modo a acolher o entendimento por nós ora sufragado.
Filipa da Costa e Silva
N.º 58470
[1] - Como apontado por Rui Medeiros, Revista de Direito Administrativo n.º7, (Janeiro-Abril 2020), p. 68-74.
[2] - Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, 4ª ed., Almedina (2020).
[3] - Ana Fernanda Neves, Contencioso da Função Pública I, Temas e Problemas de Processo Administrativo, 2.ª Edição Revista e Actualizada (2011).
[4] - José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, 4ª ed., Almedina: Coimbra (2019), p. 578 e seguintes.
[5] - Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo cit.
[6] - Ana Celeste Carvalho, António Pedro Pinto Monteiro, David Pratas Brito, José Duarte Coimbra, Marco Caldeira, Ricardo Pedro e Tiago Serrão, Arbitragem Administrativa: Uma Proposta, (2019).
[7] - «Artigo 89.o [...]
1 ― [...]
2 ― As exceções dilatórias são de conhecimento oficioso, salvo a de incompetência absoluta decorrente da preterição de tribunal arbitral voluntário ou da violação de pactos de jurisdição ou de competência, e obstam a que o tribunal conheça do mérito da causa, dando lugar à absolvição da instância ou à remessa do processo para outro tribunal.
3 ― [...] 4 ― [...]
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