A fronteira de delimitação entre “atos políticos” e “atos administrativos”

Comentário ao acórdão do STA de 29/7/2020, proc.055/20.1BALSB


1. O acórdão do Supremo Tribunal Administrativo escolhido para o presente comentário [1] versa, essencialmente, sobre três grupos de problemas: um problema de (i)legitimidade ativa dos Requerentes, de (i)legitimidade passiva da Requerida, de mérito do pedido cautelar e, finalmente, de (in)competência da jurisdição administrativa em função da matéria. Tendo em conta a densidade da matéria tratada neste acórdão e a limitação deste trabalho ao tema da jurisdição dos tribunais administrativos, limitaremos este comentário à exploração deste tema e ao modo como foi tratado pelo tribunal, sem prejuízo da relevância de todas as outras questões. 

Em termos muito breves, discute-se, neste caso, uma ação de providência cautelar intentada contra o Conselho de Ministros através da qual uma associação e um particular requerem a inibição do ato administrativo a adotar pelo primeiro que se destinaria à concessão de um avultado empréstimo à TAP, autorizado pela Comissão Europeia. Este pedido tem como fundamento o facto de não se ter verificado qualquer desenvolvimento na atividade desta entidade contrainteressada, concentrando-se a maior parte dos voos numa única região do país (Lisboa), ignorando, assim, o interesse de outras, considerando os requerentes que não existe, portanto, proporcionalidade no esforço dos contribuintes e a distribuição dos voos operados pela TAP para os diversos aeroportos.  


O problema da (in)competência do STA em razão da matéria é o primeiro problema discutido no presente acórdão, precisamente quando o Conselho de Ministros (entidade requerida) alega que se verifica uma situação de incompetência por estar em causa um ato que se integra na função política, o que desencadearia a aplicação do artigo 4.º/3 a) do ETAF. 


2. A razão que esteve subjacente à escolha do presente acórdão prende-se com o facto de se tratar de uma matéria problemática que convoca várias divergências relativamente à delimitação das fronteiras entre o exercício das funções legislativa, política e administrativa, ainda para mais quando se trata da atividade do Governo, órgão com competências para as três funções enunciadas. 


Apesar de termos algumas reservas quanto à decisão do tribunal de indeferimento da providência cautelar, acompanhamos o seu entendimento no que diz respeito especificamente ao problema da (in)competência da jurisdição administrativa na apreciação deste litígio. O STA decidiu que, neste caso, a opção do Governo de apoiar a TAP é inquestionavelmente uma decisão política, mas o mesmo não sucede com a concessão do mencionado empréstimo, que se integraria na função administrativa, seguindo, na sua argumentação, a posição que é atualmente adotada pela maioria da jurisprudência e da doutrina segundo a qual seriam atos da função política aqueles que fossem praticados pelos órgãos superiores (como o Presidente da República, a Assembleia da República e o Governo), em execução direta da Constituição (portanto, por aplicação direta da Constituição a uma situação concreta sem a intermediação de leis ordinárias) e destinados à prossecução dos objetivos fundamentais da comunidade política. Também Alexandra Leitão refere este critério de distinção assente no facto de as funções política e legislativa “terem natureza primária e visarem a realização de escolhas entre interesses essenciais da coletividade” [2]. Este é, nomeadamente, o entendimento seguido por Viera de Andrade, Afonso Rodrigues Queiró, Mário Aroso de Almeida e pelo Conselheiro Jorge Sousa. 


É claramente de louvar este “conceito restrito de atos políticos” para efeitos da aplicação do artigo 4.º/3 a) do ETAF (e consequente exclusão da jurisdição administrativa) por ser este o entendimento que melhor garante o cumprimento dos fins do Estado de Direito visto que, admitindo uma noção mais ampla de “atos políticos”, muitos atos emanados de poderes públicos estariam fora do controlo jurisdicional, permitindo-se uma fuga da fiscalização dos atos praticados pela Administração com fundamento em motivações políticas, frustrando, assim, qualquer mecanismo de tutela dos particulares contra ilegalidades administrativas. Este tem sido um trajeto seguido pela doutrina e pela jurisprudência administrativa e que é reafirmado no presente acórdão quando o STA não só afirma que o ato em questão não consta de nenhuma das alíneas do artigo 197.º da CRP (que prevê as competências do Governo no âmbito da função política) como também não admite sequer uma qualificação deste ato de concessão de empréstimos públicos como político por remissão da alínea j) do número 1 do referido artigo por não haver qualquer “fundamento constitucional” para tal [3]. Sendo o ato em questão um ato de execução do Orçamento de Estado, ele incluir-se-ia no âmbito da alínea b) do artigo 199.º da CRP (que regula a competência administrativa do Governo). 


3. O STA acabou por indeferir a providência requerida pelo particular e pela associação em causa com o fundamento de estarmos perante um ato onde existe uma grande margem de discricionariedade da Administração, existindo, por isso, um controlo jurisdicional reduzido, invocando, ainda, o facto de os Requerentes não apontarem “qualquer violação legal”. Neste ponto, como já foi referido, temos algumas reservas relativamente aos fundamentos da decisão pois, embora reconheçamos que existe de facto um reduzido controlo jurisdicional em matérias onde predomina a discricionariedade administrativa e que tal se justifica para que a Administração possa cumprir, com autonomia, a sua missão de prossecução do interesse público, mesmo nestas situações existe um controlo relativamente aos princípios fundamentais que subjazem à atividade administrativa e que se encontram elencados no artigo 266.º/2 da CRP e nos artigos 3.º e seguintes do CPA. Neste caso em particular os Requerentes não se limitaram a fazer uma avaliação da conveniência ou do mérito da atividade da contrainteressada, antes invocam, nomeadamente o princípio da proporcionalidade, referido na seguinte passagem do acórdão: 

“segundo alegam, o Estado se prepara para fazer um investimento avultado na “TAP”, sem ter em conta que a um esforço nacional de todos os contribuintes – para mais em benefício de uma empresa privada – deve corresponder um mínimo de proporcionalidade relativamente ao total de pessoas, empresas e comunidades que a empresa visa servir” (ênfase acrescentada). 


Este princípio encontra-se referido no artigo 266.º/2 e no artigo 7.º do CPA e a sua violação poderia estar em causa neste caso concreto por se verificar que, apesar de todo o investimento, esta entidade prossegue apenas os interesses de uma região, limitando os rotas de voos a essa região, e não desenvolvendo atividade noutras áreas, portanto, não atendendo ao interesse nacional (de todas as regiões) na mobilidade e nos transportes. Tal não se resume apenas a uma questão de mérito ou de conveniência, mas numa questão de legalidade por implicar princípios reconhecidos legalmente e que devem ser cumpridos pelas entidades administrativas inclusive na adoção de atos com ampla margem de discricionariedade.


4. Em suma, considerámos este acórdão como um bom objeto de um comentário dada a sua atualidade e a problemática e divergências das questões nele discutidas, considerando-o como uma reafirmação de um marco importante a que o contencioso administrativo tem vindo a alcançar: o da limitação das situações de “fuga” à fiscalização da atividade administração por motivações políticas.


Bibliografia:

• ALMEIDA, Mário Aroso de. Manual de Processo Administrativo. 4.ª ed. Almedina, 2020.

• ANDRADE, José Carlos Vieira de. A Justiça Administrativa. 17.ª ed. Almedina, 2019.

• GOMES, Carla Amado e SERRÃO, Tiago. Responsabilidade Civil Extracontratual das Entidades Públicas. Anotações de Jurisprudência. Icjp, 2013.


Catarina Oliveira da Silva Duarte 

N.º de aluno: 58483. Subturma 5. Turma B. Ano letivo 2020/2021.

[1] O acórdão pode ser consultado aqui.

[2] LEITÃO, Alexandra.Responsabilidade por ato da função legislativa decorrente da Lei do Orçamento de Estado e âmbito da jurisdição administrativa”, in Responsabilidade Civil Extracontratual das Entidades Públicas. Anotações de Jurisprudência. Icjp, 2013, pág. 12.

[3] Contrariamente ao que é afirmado na Resolução do Conselho de Ministros n.º 53-C/2020, que fundamenta a aprovação da concessão na alínea j) do n.º 1 do artigo 197.º.

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