O âmbito de jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais – comentário à alínea i) do nº1 do artigo 4º ETAF
O Estatuto dos Tribunais
Administrativos e Fiscais (doravante ETAF), surge em 2004, sendo que começa a
ser “cozinhado” em 2000, num processo
de revisão do Contencioso Administrativo e Tributário (doravante CAT). É aprovado
em 2002 e entra em vigor no ano de 2004. Apesar de ter sido, nas palavras de
VASCO PEREIRA DA SIVA, um diploma “algo fraco”,
o seu artigo 4º veio já alargar o âmbito do CAT a todas as relações
administrativas, fazendo mudá-lo radicalmente. Com efeito, o ETAF estabelece,
então, no seu artigo 1º/1, que tudo o que fosse atuação administrativa, seria passível
de ser tutelado pela jurisdição administrativa. Neste universo podíamos incluir
1) o que correspondesse ao exercício da função administrativa, realizado por
autoridade administrativa ou por um particular no exercício de função
administrativa; e 2) qualquer ato, contrato, regulamento ou atuação material
administrativa. Em boa verdade, na esteira de VASCO PEREIRA DA SILVA, este
artigo ultrapassou por completo as visões clássicas do CAT e “veio conciliar o universo do contencioso
com o universo do Direito Administrativo, realidades até aí desencontradas”.
O douto professor não deixa, contudo, de fazer um reparo à opção legislativa de
deixar fora do âmbito deste artigo 4º as relações entre Estado-empregador
público e funcionário ao serviço da administração, uma vez que, nas suas
palavras, este último, “tem um estatuto
de Direito Público, quer tenha estatuto de funcionário público ou de
trabalhador privado”. Para concluir este breve introito, diga-se sumariamente
que o artigo 4º ETAF tem como escopo identificar as matérias da competência dos
Tribunais Administrativos e Fiscais e delimitá-las positiva e negativamente, ou
seja, determinar a competência destes tribunais em razão da jurisdição. Não
existindo, portanto, norma especial que se aplique ao caso concreto, este será
plenamente aplicável.
Entrando, agora, na
matéria que nos propusemos a analisar, a alínea i) do nº1 do artigo 4º ETAF não
fazia parte da versão embrionária do diploma legal. Com efeito, foi-lhe acrescentada
mais tarde, com o intuito de alargar o âmbito deste artigo às situações em que
a Administração, na prossecução de uma atividade material, viola de forma
grosseira o direito de propriedade privada do particular ou outro direito
fundamental. Estas situações constituídas em “via de facto”, cuja expressão tem origem no francês “voie de fait”, sofreram contudo, certa
evolução doutrinária, graças à vasta jurisprudência que sobre elas versou. Num
primeiro momento, segundo JORGE PAÇÃO, a via de facto era associada a um ato
jurídico-público ou material atentatório do núcleo duro dos direitos subjetivos
liberais – a liberdade e a propriedade. Depois, passou a entender-se que os
comportamentos da Administração enquadrados neste conceito teriam já perdido
qualquer natureza administrativa, pelo que deveriam ser exclusivamente apreciados
pelos tribunais judiciais, uma vez que, nas palavras de VASCO PEREIRA DA SILVA,
os tribunais administrativos não se tratavam, à época, de verdadeiros
tribunais, nem o direito processual administrativo permitia o controlo da legalidade
das operações materiais da administração ou a condenação da Administração à
abstenção ou adoção de comportamentos. É imperioso, nesta sede, fazer especial
menção ao acórdão Carlier, que
sustentou os primeiros requisitos da “via
de facto”, delimitando o âmbito desta teoria ao controlo de atos materiais
da Administração, desde que, nas palavras de JORGE PAÇÃO, “estas constituíssem um comportamento que manifestamente, não
encontrava respaldo no exercício de um poder atribuído por lei à Administração”.
Apesar da grande lapidação jurisprudencial do conceito, a doutrina dá-nos
pressupostos que, uma vez preenchidos, se traduzem na constituição da via de
facto, a saber: 1) uma atuação material da Administração; 2) de manifesta
ilegalidade; 3) dela resultando a violação de um direito fundamental do
particular (em especial, o direito de propriedade privada). Deste modo
percebemos que estão aqui em causa relações jurídicas administrativas, pelo que
não faz qualquer sentido a anterior teoria da “voie de fait”, que submetia este tipo de litígios à jurisdição
comum. Comungando da posição de VASCO PEREIRA DA SILVA, parece-nos de bom-tom a
inclusão da alínea i) neste artigo 4º ETAF, precisamente porque, se estamos a
falar de relações jurídicas administrativas, sempre esteve preenchido o critério
do artigo 1º/1 ETAF, respeitando esta inclusão a reserva de jurisdição elencada
no artigo 212º/3 da CRP e associando os litígios de natureza administrativa aos
tribunais administrativos, certamente melhor preparados para os dirimir - vindo
o legislador dotar o ordenamento jurídico de segurança para os particulares.
Quanto à construção do
preceito em si, importa dar uma nota final: como assinala JORGE PAÇÃO, a
expressão “sem título que a legitime”, utilizada no preceito, poderá ser
inoportuna, uma vez que pode limitar as situações de “via de facto” àquelas em
que a Administração devesse ter uma decisão anterior que pudesse sustentar devidamente
a sua atuação. Tal não é assim: como visto supra, esta “ausência de título”
deve reportar-se a toda e qualquer situação de manifesta ilegalidade dos atos
jurídicos essenciais à legitimação jurídica da atuação de facto.
Bibliografia relevante:
VASCO PEREIRA DA SILVA, O Contencioso Administrativo no Divã da
Psicanálise – ensaio sobre ações no novo processo administrativo, 2ª
edição, Coimbra, 2008, p. 236.
JORGE PAÇÃO, O âmbito da jurisdição administrativa:
considerações renovadas sobre as alíneas i), l) e n) do n.º 1 do artigo 4.º do
ETAF in Comentários à legislação processual administrativa, 4ª edição,
Lisboa, 2020, pp 306 a 321.
Francisco António R J
Robalo
TA, Subturma 5
Comentários
Enviar um comentário