O ÂMBITO JURISDICIONAL ADMINISTRATIVO, CONCEITO DE RELAÇÃO JURÍDICA ADMINISTRATIVA E ALÍNEA O) DO ARTIGO 4º

 

1.     Contextualização

A competência em razão da jurisdição é um pressuposto processual que diz respeito aos Tribunais.  Em Portugal, o poder jurisdicional divide-se entre os tribunais comuns/judiciais e os tribunais administrativos e fiscais.  – art.º 209º CRP. Os tribunais judiciais são os “tribunais comuns em matéria cível e criminal”, aos quais compete exercer a “jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais” – art.º 211/ 1 CRP.  Pelo art.º 212 /3 CRP temos que “o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais” cabem aos tribunais administrativos e fiscais. - art. 210.º/3 CRP, art. 64.º e art. 40.º/1 LOSJ

O ETAF, no seu art.º 4º, e concretizando o art.º 212º /3 CRP, circunscreve o âmbito de jurisdição administrativa. Serão da competência dos tribunais administrativos e fiscais todos os litígios que caibam dentro da previsão de alguma das alíneas do n.º 1 e n.º 2, do mesmo artigo. A estes cabe dirimir os conflitos de interesses públicos e privados no âmbito das relações jurídicas administrativas (art.º 1º /1 ETAF e 212º /3 da CRP). Os números 1 e 2 do art.º 4 delimitam, positivamente o âmbito jurisdicional administrativo, enquanto que os números 3 e 4 delimitam-no negativamente.

Ainda que se aplique o critério da existência de um litígio sobre uma relação jurídica administrativa ou fiscal, em primeiro lugar procura indagar-se se, sobre a específica matéria em causa, existe disposição legal que dê resposta quanto à jurisdição competente. Só um universo residual de situações é que é resolvido por aplicação directa do critério da relação jurídica administrativa – art.º 4º /1 ETAF.

 

2.     Desenvolvimento

O Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 02/10 revê o CPC e o ETAF e introduz algumas mudanças significativas particularmente na competência dos tribunais administrativos e fiscais. Quanto ao n.º 1 do art.º 4º exclui-se deste preceito a palavra nomeadamente, o que indica o fim de um elenco aberto de situações reguladas pelos tribunais administrativos e fiscais. Aponta no sentido da taxatividade, em detrimento de uma mera indicação: dentro do âmbito da jurisdição administrativa estarão os casos que se enquadram na lista, não pouco extensa, dos números 1 e 2, mas não mais do que isso.

Mas se por um lado, parece estar a restringir-se o âmbito jurisdicional administrativo, acrescenta-se, na nova redacção do artigo 4º, a alínea o) que estatui que nela se incluam as “relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito as matérias previstas nas alíneas anteriores”. Mais uma vez, o legislador aqui faz referência ao critério constitucional e material da “relação jurídica administrativa”. Ou seja, para além de todos os casos elencados no art.º 4º/1, o ETAF faz incluir, no âmbito jurisdicional, a apreciação de quaisquer litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais. Assim, esgotadas todas as alíneas do art.º 4º /1, cumpre por fim verificar se estamos diante de uma verdadeira relação jurídica administrativa.

Este conceito é um conceito um tanto etéreo e indeterminado, alvo de discussão doutrinal. Há quem entenda a relação jurídica administrativa num sentido subjectivo: considera-se como administrativa qualquer relação em que intervenha a Administração, ou seja, uma pessoa colectiva pública, independentemente dos termos no qual actue. Já na acepção objectiva, o elemento mais relevante não é a intervenção da Administração, mas a actuação dotada de poderes de autoridade administrativa. Por fim, temos a acepção funcional que reconduz a relação administrativa ao âmbito substancial da própria função administrativa. [1]

O conceito de relação jurídica é concretizado em sentidos diversos, por vários nomes da doutrina: FREITAS DO AMARAL define-a como “toda a relação entre sujeitos de direito, públicos ou privados, que actuem no exercício de poderes ou deveres públicos conferidos por normas de direito administrativo”. Já VIEIRA DE ANDRADE por sua vez define a relação jurídica administrativa como “uma relação jurídica de direito público” na qual “um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público ou de um dever público, conferido ou imposto com vista à realização de um interesse público legalmente definido”. MÁRIO AROSO DE ALMEIDA subscreve a tese de FREITAS DO AMARAL, concordando com a ideia que a actuação administrativa é regulada por normas de Direito Administrativo.


3.     Conclusão

A introdução da alínea o) no art.º 4º veio alargar o âmbito jurisdicional administrativo, trazendo, à sua esteira, quaisquer litígios que envolvam relações jurídicas administrativas, o que antes da revisão do ETAF, de 2015, não acontecia. Estamos então perante um verdadeiro fenómeno de dilatação do poder jurisdicional administrativo, que tem ocorrido desde a grande reforma do contencioso administrativo  

Segundo MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, foram três os tipos de litígios que passaram a estar incluídos no âmbito administrativo, caindo assim na alínea o) do art.º 4º: os primeiros são os que respeitam à atribuição de indemnizações devidas em virtude da imposição de sacrifícios por razões de interesse público[2]. Esta regra é derrogada por disposições especiais: por exemplo, o Código das Expropriacões confere competência aos tribunais judiciais para resolver os litígios decorrentes de expropriação, servidão e requisição administrativa.  O segundo grupo de casos diz respeito às pretensões dirigidas à condenação da emissão de actos administrativos ilegalmente omitidos ou recusados, nos termos do art.º 66º ss. CPTA. O último grupo de casos trata das pretensões genéricas do art.º 37º /1 als. f) e g) no que diz respeito às pretensões dirigidas a obter o reconhecimento de situações jurídico-administrativas.

 

BIBLIOGRAFIA

MÁRIO AROSO DE ALMEIDA – in Manual de Processo Administrativo, 3ª edição, Almedina, 2017

ANA FERNANDES NEVES – in e-Pública, V. 1, nº 2, 2014, “Âmbito de jurisdição e outras alterações ao ETAF

JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE – in A Justiça Administrativa (Lições), 10ª edição, Almedina 


 Isabel Villa de Brito 

 N.º 58162

 

 



[1] VIEIRA DE ANDRADE, in A Justiça Administrativa (Lições), 10.ª Edição, Almedina, pág. 59

[2] Na verdade, seria um tanto bizarro não incluir estes litígios no âmbito jurisdicional administrativo…

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