O art.4º: A norma ''salvação'' do ETAF

Ana Margarida Camacho Fernandes

Aluna nº 58533 | 4º ano | Turma A | Subturma 5 



Nota prévia:

 O presente trabalho versa sobre a competência em razão da jurisdição, focando-se no art.4º do ETAF. Um dos dois diplomas que compõem a ‘’Grande Reforma’’ do Processo Administrativo, a par do CPTA,é justamente o ETAF, é alvo de críticas ferozes, exceto a norma a abordar, tida como a ‘’salvação’ do diploma.

 

I.Introdução: O ETAF e o art.4º

A ordem jurídico-constitucional portuguesa reconhece várias categorias de tribunais no art.209º/nº1. No contexto do Processo Administrativo, relevam os da alínea b), os TAF, incumbindo a estes o julgamento de ações e recursos contenciosos que tenham por objeto os litígios emergentes de relações jurídicas-administrativas (e fiscais)- (cláusula-geral prevista no art.212º/nº3). 

Mas como saber quais são? Há que recorrer ao ETAF - Lei 13/2002 – o diploma que concretiza a competência dos TAF, cujos períodos marcantes da‘’vida’’ deste diploma a reter são (i) 2002/2004 em que se sucede a ‘’Grande Reforma’’, a (ii)‘’Reforminha’’ de 2015 e a (iii)‘’Reforminha’’ de 2019. Tendo-se melhorado alguns aspetos, mas com o mesmo nível de pobreza, exceto o art.4º.Para o Senhor Professor Vasco Pereira da Silva este diploma corresponde ao ‘’mínimo constitucional’’ [i] que é ‘’salvo’’ pela norma do art.4º, e é justamente nesta que procuraremos resposta.

Desde modo, procuraremos conhecê-la e analisá-la criticamente. Focando-nos, em particular, num critério, tendo em conta o alargado espectro vigente, pese embora os limites e restrições que ainda lhe são (fundamentadamente) apontados.

O art.4º define o âmbito através de diversos critérios[ii] , porém, o ponto de partida é verdadeiramente o art.1º do ETAF relativo à jurisdição administrativa, no entanto, é a remissão que nos interessa. Delimitando positivamente no nº1 e 2, através de uma técnica legislativa ‘’aberta’’ com critérios que se (a)cumulam e sobrepões, no entanto, resulta a adoção do entendimento funcional da administração (conceito material). Por sua vez, o nº3 e o nº4 do art.4º delimitam de forma negativa, criando-se problema novos, a título de exemplo, o da al.e) do nº4.

Parte-se de uma noção base, a da relação jurídico-administrativa é uma noção base, referida no art.212/nº3 CRP e na al.a) e o) do nº1 do art.4º ETAF , importando defini-la como aquela cujo direito, especificamente, o Administrativo atribui relevância, através da regulação de normas de Direito Administrativo, como ensina o Senhor Professor Mário Aroso de Almeida, no mesmo sentido do Senhor Professor Vieira de Andrade.

Este entendimento depende da própria noção Direito Administrativo adotada. Na senda de pensamento do Senhor Professor Mário Aroso de Almeida, que vai de encontro à dos Senhores Professores Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos, e no mesmo sentido,  do Senhor Professor Regente, o Direito Administrativo é o ‘’direito comum da função administrativa’’ pelo que se afasta da conceção orgânica ou formal.

 Releva, portanto, a atuação de todos os sujeitos jurídicos que exerçam a função administrativa, mas não só, também aquelas que se intercecionem com esse mesmo exercício. E é neste sentido que evolução no ETAF, e no próprio Direito Administrativo vai ganhando mais acolhimento, doutrinário e também jurisprudencial.

 

II. O caso específico da Responsabilidade Civil Extracontratual – als.f), g) e h)

            As alíneas f), g) e h) do nº1 do art.4º dizem respeito à Responsabilidade Civil Extracontratual e é necessária a conjugação com o nº4/al.a) do mesmo preceito que delimita negativamente, na medida em que se excluem a apreciação dos litígios relativos a ações de responsabilidade por ato judiciário cometido por tribunais judiciais, assim como ações de regresso.

            Especificamente, a al.f) diz respeito aos danos resultantes do exercício das funções política, legislativa e jurisdicional, sem prejuízo da al.a), pelo que, claramente, a função administrativa está incluída, pese embora não haja expressa menção. Este artigo veio clarificar as dúvidas cuja redação anterior suscitava, consagrando-se uma cláusula genérica sobre as pessoal coletivas de direito público.[iii]

Quanto a al.g) concentra-se no ‘’de quem’’:  Títulos de órgãos, funcionários, agentes, trabalhadores e demais servidores públicos incluindo ações de regresso. Sendo que este preceito deve apenas incidir sobre atos praticados no exercício das funções, ou seja, apenas atos funcionais[iv].

A al.h) remete para os demais sujeitos aos quais é aplicável o regime da responsabilidade civil extracontratual do estado e demais entidades públicas, que consta da Lei 67/2007 de 31 de dezembro, devendo conjugar-se com o nº5/art.1º. Aqui, conclui-se que abarcam as pessoas coletivas de direito público, no que toca aos atos de gestão pública.[v]

O excurso pelas alíneas que se focam na responsabilidade civil extracontratual permite-nos concluir que as atuações dos entes privados estão abrangidas, desde que esteja em causa o exercício da função administrativa.

 

III. Apontamento ao Proc.014/18 de 23 de janeiro de 2020

Aqui chegados, consideramos pertinente deixar um apontamento ao recente Acórdão do Tribunal de Conflitos que demonstra o alcance prático e atual da temática em análise, em que se decidiu julgar o recurso parcialmente procedente. Revogou-se a absolvição da instância do <<Fundo de Resolução>>, declarando-se a jurisdição comum competente para conhecer do pedido. Manteve-se a decisão de absolvição da instância quanto ao <<Banco de Portugal>> e a <<CMVM>>.

 Este é um conflito negativo de jurisdição entre o Tribunal Judicial da Comarca de Braga e o Juízo Central Cível de Guimarães e os TAF referente a uma ação declarativa de condenação contra o BdP, o FdR, a CMVM e outros, com vista a obter uma indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais com base em violação de deveres de informação e supervisão comportamental e prudencial, lealidade e probidade, entre outros. O TJ julgou procedente a exceção dilatória da incompetência material por entender que cabia aos TAF, tendo a autora, inconformada, interposto recurso de apelação para TRG que manteve procedente a decisão quanto ao BdP, CMVM e FdR e revogado quanto aos demais. De novo, inconformada, interpôs recurso de revista para o STJ que veio a ser convolado em recurso para o TConflitos.

O acórdão partiu do art.4º/nº1/al.f) base para das ações para efetivação da responsabilidade civil extracontrtaual, e ainda ao nº2 do mesmo preceito, concluiu pela incumbência do TJ do julgamento por depositante em banco intervencionado, contra aquele banco, o presidente da comissão executiva, o banco de transição e o Fundo de Resolução. Porém, decidiu que incumbe à jurisdição administrativa o conhecimento do pedido quanto ao BdP e à CMVM pelo incumprimento dos deveres de supervisão e vigilância.

 

IV. Considerações Finais

Como vimos, e não podemos deixar de concordar com o Senhor Professor regente, o art.4º consagra de forma avulsa critérios que se (a)cumulam, o que, embora, não seja a melhor técnica a nível formal, cumpre o propósito de fazer corresponder de forma cada vez mais perfeita à função material da administração: Não é o sujeito que define a natureza da atividade, mas esta que definirá funcionalmente o sujeito.

As dúvidas da qualificação assumem relevância prática, pois determinam proposição perante os tribunais judiciais ou administrativos. E, dada a crescente utilização dos mecanismos de direito privado pela Administração, estas dúvidas tendem a ser cada vez mais frequentes, como se corrobora pelo acórdão mencionado. Não podemos, pois, deixar de reconhecer o papel fundamental dos Tribunais de Conflitos – art.209º/3 CRP- na resolução dos conflitos de jurisdição.

Em suma, a competência em razão da jurisdição é o primeiro passo com o qual, desde logo, nos confrontamos com questões pré-judiciais de extrema relevância. E, quanto ao tema da Responsabilidade Civil Extracontratual, muito já se fez, não obstante, há ''resquícios de traumas'' ainda a superar.


V.Bibliografia e Webgrafia:

          - AROSO DE ALMEIDA, Mário; ‘’Manual de Processo Administrativo’’, 4º edição, 2020, Almedina;

          - PEREIRA DA SILVA, Vasco; ‘’O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise’’, Almedina, 2º edição;

          - VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos; ‘’Justiça Administrativa’’, 10º edição, 2009, Almedina;

          - ‘’Responsabilidade Civil Extracontratual das Entidades Públicas’’

https://www.icjp.pt/sites/default/files/publicacoes/files/dirrespciv_ebook_completo.pdf

(Responsabilidade civil extracontratual de concessionários e obras públicas e jurisdição administrativa, autoria do Senhor Professor Tiago Serrão);

          - ‘’A Revisão do Código de Processo nos Tribunais Administrativos II’’, e-book: http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/Administrativo_fiscal/eb_RevisaoCPTA_II.pdf (3. Novidades e desafios sobre o âmbito de jurisdição administrativa, autoria do Senhor Professor Luís Filipe Colaço Antunes);

          - ‘’Revisitando a ‘’Reforminha’’do Processo Administrativo de 2019 – ‘’Do útil, do Supérfluo e do Erróneo’’ ’’; e-book https://e-publica.pt/volumes/v6n3/pdf/a2n3v6.pdf

          - Ac. Tribunal de Conflitos, Proc.014/18 DE 23-01-2020, http://www.dgsi.pt/jcon.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/79498da831ff386a802584fe005970a0?OpenDocument

          - Aulas Teóricas do Senhor Professor Vasco Pereira da Siva (Ano letivo 2020/21)



[i] Em sede de aula teórica, foram abordados os três níveis de críticas: relativamente à falta de especialização num diploma que visa, justamente, concretizar uma justiça especializada para a administração: a formação dos juízes porque nada se diz e esta tem que ser especificada, completa e permanente; a carreira dos juízes porque carecem verdadeira carreira autónoma; e a inexistência dos tribunais especializados dentro da jurisdição encontrando-se, todavia, previstos na ‘’Reforminha de 2019’’.

[ii]  Segundo a Senhora Professora Ana Neves, o art.1º/nº1 perde o caráter de cláusula geral ao remeter para os litígios compreendidos no art.4º.

[iii] O preceito, no entanto, continua sem distinguir a atuação no exercício da função administrativa- gestão pública versus gestão privada - sendo relevante a distinção no plano material, porém, em virtude do art. 1º do regime de responsabilidade extracontratual vem esbater a importância no plano processual.

[iv] Como refere o Senhor Professor Mário Aroso de Almeida, é uma ilação óbvia que seja no exercício das funções desempenhadas e por causa delas.  Pelo que as dúvidas suscitadas anteriormente pela anterior redação não apresentam teor válido.

[v] Ao contrário do regime nas pessoas coletivas de direito público, a distinção entre atuação de gestão pública e gestão privada releva nos dois planos, o substantivo e o processual. Pelo que apenas a responsabilidade emergente da gestão pública se rege pelo RRCEE, como ensina o Senhor Professor Mário Aroso de Almeida.

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