Responsabilidade civil extracontratual de entidades privadas - extensão do âmbito da jurisdição administrativa

As fontes das quais extraímos quais os tribunais materialmente competentes para conhecerem determinadas causas são diversas. A Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, no seu artigo 18°, dispõe que são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional, tal como a Constituição da República Portuguesa. Desta, o artigo 212°/3 dispõe que compete aos tribunais administrativos o julgamento de ações e recursos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas, sendo que o artigo 4°do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) concretiza este preceito.

Surge, então, a questão do que se entende estar perante um litígio emergente de relações jurídicas administrativas. Até 2004, fazia-se uma distinção entre gestão pública e gestão privada, uma consequência dos “traumas” do contencioso administrativo, segundo a ótica de Vasco Pereira da Silva, que resulta nesta “esquizofrenia” do contencioso da responsabilidade civil. Efetivamente, não parece fazer muito sentido que atuações de carácter técnico que não se distinguem das atuações de carácter privado, mas que são feitas no âmbito da função administrativa leve a uma separação de responsabilidade civil. Por exemplo, um médico do SNS que no mesmo consultório atende particulares, fora das horas de trabalho, não deve ter “tratamento” diferente quanto a responsabilidade civil extracontratual pois a atividade é a mesma, independentemente da atuação ser de carácter privado ou no âmbito da função administrativa. 

 Com a entrada em vigor da ETAF, em 2004, e por consequência a consagração do seu artigo 4°, desapareceu a necessidade de fazer a distinção entre gestão pública e privada: os tribunais administrativos passaram a ser competentes quando houvesse lugar a responsabilidade administrativa. Vasco Pereira da Silva critica esta solução pois a competência da regulação do caso depende do resultado do mesmo. Ora, qualquer regra processual que atribui competência a um tribunal tem de ser prévia à decisão final do caso.

A lei n°67/2007, que aprova o regime da responsabilidade civil extracontratual do estado e demais entidades públicas, utiliza a expressão “disposições ou princípios de direito administrativo” no seu artigo 1°/2 onde procura precisar o conceito de “exercício da função administrativa”, voltando à lógica da gestão pública – esta norma que ainda hoje vigora pode continuar a gerar o problema da distinção entre gestão pública e gestão privada e não se saber qual o direito aplicável. Marcelo Rebelo de Sousa critica a lei, mas conforma-se com ela, enquanto que Vasco Pereira da Silva critica-a e apresenta uma solução: ao referir “disposições e princípios de direito administrativo”, a referência aos princípios permite o controlo também das atuações de gestão privada, pois advém do artigo 2°/3 do CPA que os princípios do Direito Administrativo se aplicam a toda a atividade da administração, ainda que de gestão privada. Ou seja, apesar da lei n°67/2007 ter ficado aquém das expetativas, por via desta interpretação (corretiva), coordenada com o CPA, é possível regular unicamente as antigas situações de gestão pública e privada.

O facto de a letra da lei dispor da seguinte forma: os tribunais administrativos são competentes quando “haja lugar” a responsabilidade civil administrativa (responsabilidade civil essa que abrange atuações públicas e privadas), levou a uma tendência jurisprudencial em que só se podia determinar exatamente a competência do tribunal depois de saber se havia responsabilidade civil administrativa, tendência essa criticada pela doutrina, como já mencionado, pois leva a uma inversão da lógica ao necessitar de se avaliar o mérito para se averiguar a competência. 

A “reforminha” de 2015, apesar de “aprimorar” a linguagem da lei, não conseguiu alterar a jurisprudência. Segundo Vasco Pereira da Silva, ainda há pedidos reconvencionais que são remetidos para os tribunais comuns, que na sua ótica são atos inconstitucionais. Apresenta como solução a menção a “matérias conexas”, ou seja, matérias relacionadas com a responsabilidade, que mesmo não sendo administrativa, teriam de ter somente um tribunal a decidir sobre tais matérias

Concluindo, o regime de responsabilidade civil administrativa é aplicável tanto às atuações como às omissões em que existam “poderes de autoridade”, enquadradas na função administrativa por “normas e princípios de direito administrativo”. Para mais, a lei ao referir “princípios” abrange as antigas atuações de “gestão privada”: por mais privado que seja qualificado o regime jurídico aplicável a uma atividade administrativa, ele não pode nunca corresponder a uma “fuga para o direito privado”, pois àquela continuam a ser também sempre aplicáveis os princípios de Direito Administrativo.  

 

Tiago Peyroteo, n°58489


          Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, Almedina, 2010 

          Vasco Pereira da Silva, O Contencioso no Divã da Psicanálise, Almedina, 2edição, 2013 

 

 

 

 

 

 

 

 

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