A condenação à prática de ato devido e o princípio da separação de poderes

 1. Introdução: Enquadramento, origem e relevância

O CPTA, na sua redação anterior à reforma de 2015, distinguia, no que às formas de processo respeitava, entre processos urgentes e não-urgentes e, dentro destes últimos, entre ação administrativa comum e ação administrativa especial, adotando, assim, um modelo dualista. A partir da referida reforma, o modelo dualista caiu, dando lugar à consagração da ação administrativa (art. 37.º CPTA) como o único meio processual não urgente. O que não caiu, como adiante veremos, foram as especificidades de regime associadas aos diferentes tipos de pretensões, continuando a ter toda a relevância a sua distinção [1].

A ação de condenação da Administração à prática de atos devidos figurava entre as ações administrativas especiais, sendo que, atualmente, se encontra especificamente regulada nos arts. 66.º ss. CPTA, enquanto pretensão que se insere no âmbito da ação administrativa. Surgiu, por influência da Alemanha do pós-guerra[2], como forma de reagir contra as omissões da Administração que consubstanciassem violações do seu dever de agir – dever expressamente consagrado no CPA desde 1991[3]. Como sabemos, o modelo francês tradicional, por nós adotado, colocava no centro do contencioso administrativo o recurso de anulação, limitando fortemente os poderes dos tribunais de julgar a Administração, sob a égide de uma alegada preocupação com a observância do princípio da separação de poderes, orientação que, como vimos estudando, resultou, em diversos aspetos, numa verdadeira isenção de escrutínio judicial das ações e omissões da Administração.  Como frisa o Prof. Vasco Pereira da Silva[4], importa não perder de vista a diferença substancial que se verifica entre a mera condenação da Administração à prática de um ato indevidamente omitido e a substituição por parte do tribunal à Administração na prática desse ato.

 

2. O objeto da ação de condenação à prática de ato devido

O art. 67.º/1 CPTA vem dizer-nos que esta ação pode ser intentada quando, tendo sido apresentado requerimento que constituísse a Administração no dever de decidir[5]: 1) não tenha sido proferida decisão dentro do prazo legalmente estabelecido – estamos no campo da pura omissão –; 2) tenha sido praticado ato administrativo de indeferimento – não há uma omissão pura, mas a pretensão do autor não se satisfaz com a simples eliminação do ato de indeferimento – ou de recusa de apreciação do requerimento – situação equivalente à omissão –; ou 3) tenha sido praticado ato administrativo de conteúdo positivo que não satisfaça integralmente a pretensão do interessado – novamente, a mera eliminação do ato (desta vez) de conteúdo positivo não satisfazerá a pretensão do autor.

Aquando da reforma de 2015, no art. 67.º/4 foram adicionadas a este rol outras duas situações, as quais já não pressupõem a apresentação de requerimento. A propositura desta ação, nestes moldes, será possível quando[6]: 1) não tenha sido cumprido o dever de emitir um ato administrativo que resultava diretamente da lei – solução que facilmente se compreende por continuar a existir um dever de agir, mas resultante da lei e não da apresentação de requerimento –; ou 2) se pretenda obter a substituição de um ato administrativo de conteúdo positivo. Sobre esta última hipótese, teceremos mais à frente as nossas considerações.

O Prof. Vasco Pereira da Silva[7] esclarece que, nesta ação, o pedido imediato é a condenação da Administração na prática do ato, o pedido mediato é o “direito do particular a uma determinada conduta da Administração, correspondente a uma vinculação legal de agir” e a causa de pedir é a violação do dever de agir constituído. Cabe então perceber até que ponto pode ser atendido o pedido do autor nestas ações.

 

3. Os poderes de pronúncia do tribunal

Peça-chave para fazer frente às já anunciadas preocupações com a observância do princípio da separação de poderes é o art. 71.º/2 CPTA, que vem delimitar os poderes de pronúncia do tribunal no quadro destas ações, em concretização dos arts. 3.º/1 CPTA e 111.º CRP.

Da CRP resulta claramente que a função jurisdicional se cinge à resolução de litígios mediante a aplicação do direito ao caso concreto, ao passo que a função administrativa se prende com a prossecução do interesse público e a consequente satisfação das necessidades coletivas. Ora, não há dúvidas de que a Administração se encontra em melhor posição para dar cumprimento a este desiderato constitucional, dispondo de conhecimentos técnicos, de uma estrutura e de meios indispensáveis a isso mesmo. Assim, a menos que estejam em causa aspetos relativos à mera aplicação da lei, a intervenção dos tribunais será, em princípio, inadequada e até prejudicial. Por outro lado, ao passo que os tribunais estão protegidos pelo estatuto de independência (art. 203.º CRP), o qual impede que se lhes assaque qualquer responsabilidade política, a Administração Pública pode ser sujeita a este escrutínio quer pelo eleitorado quer pelos órgãos de controlo político[8]. O que fica dito coloca em evidência a necessidade de não permitir quer a uns quer a outros órgãos imiscuir-se em funções alheias.

O art. 71.º/2 CPTA estabelece como limite aos poderes de pronúncia do tribunal a necessidade de “formulação de valorações próprias do exercício da função administrativa”, a qual deve ser entendida como correspondendo à “margem de livre decisão administrativa”[9]/[10]. Assim, quanto à condenação à prática de atos que não sejam absolutamente vinculados, os tribunais não poderão definir o conteúdo dos mesmos, mas apenas condenar a Administração à sua prática (n.º 3), explicitando as vinculações que esta deve observar (n.º 2).

 

3.1. Em particular: a possibilidade de substituição do ato administrativo

A possibilidade de o tribunal condenar a Administração na substituição de um ato de conteúdo positivo (art. 67.º/4/b) CPTA) parece bastante duvidosa. No que toca aos atos válidos, o art. 173.º/1 CPA manda aplicar à substituição as normas reguladoras da revogação, das quais não resulta qualquer obrigatoriedade de revogar. Por outro lado, no que concerne aos atos inválidos, o art. 173.º/2 CPA diz-nos que a substituição equivale à sanação, sendo que quanto a esta também não parece haver qualquer obrigatoriedade[11]. Disto resulta, justamente, que, nestes casos, se impõe a tal “formulação de valorações próprias do exercício da função administrativa”.

Deste modo, a condenação à substituição apenas parece caber nos poderes de pronúncia do tribunal quando a obrigatoriedade de proceder a essa substituição resulte de lei especial, acabando o preceito da alínea a) do art. 67.º/4 CPTA por consumir o disposto na alínea b) do mesmo artigo, esvaziando-a de sentido[12].

 

 

Beatriz Medina Vera-Cruz Pinto

N.º 58480

TA5



[1] Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, 4ª edição, Coimbra, 2020, pp. 72-76.

[2] Vasco Pereira da Silva, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise – ensaio sobre ações no novo processo administrativo, 2ª edição, Coimbra, 2008, pp. 380 e 382.

[3] Alexandra Leitão, A condenação à prática de ato devido no Código de Processo nos Tribunais Administrativos: âmbito, delimitação e pressupostos processuais in Comentários à legislação processual administrativa, 4ª edição, Lisboa, 2020, p. 663.

[4] Vasco Pereira da Silva, op. cit., pp. 377-378.

[5] Alexandra Leitão, op. cit., pp. 664-667.

[6] Alexandra Leitão, op. cit., p. 668.

[7] Vasco Pereira da Silva, op. cit., pp. 383-384.

[8] António Cadilha, Os poderes de pronúncia jurisdicionais na ação de condenação à prática de ato devido e os limites funcionais da justiça administrativa in Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Sérvulo Correia, II, Coimbra, 2010, pp. 168-169.

[9] António Cadilha, op. cit., p. 187.

[10] Esta margem de livre decisão compreende tanto a discricionariedade – faculdade de escolha de uma alternativa de atuação entre várias atendíveis, à luz da estatuição da norma –, como a margem de livre apreciação – autonomia para preencher valorativamente conceitos indeterminados contidos na previsão da norma. Cf. António Cadilha, op. cit, pp. 174-176.

[11] Alexandra Leitão, op. cit., p. 668-669.

[12] Alexandra Leitão, op. cit., p. 670.

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