A figura do contrainteressado no Contencioso Administrativo
A modernização tem-se sentido em muitos aspetos no seio do Contencioso Administrativo, sendo o alargamento do âmbito da relação bilateral entre particular e Administração para abranger também terceiros, colateralmente afetados, uma destas fugas à tradição. Efetivamente, como temos vindo a analisar não só no seio do nosso estudo do Contencioso Administrativo, mas também recorrendo a conhecimentos adquiridos em anos pretéritos, é-nos possível constatar a complexidade das relações que surgem no âmbito das atuações da Administração, o que tem por consequência, nomeadamente, o facto de serem suscetíveis de afetar uma panóplia de interessados, para o bem e para o mal. É neste sentido que, no âmbito de um litígio impulsionado por um particular contra a Administração, a pretensa decisão irá (em muitos casos, inevitavelmente) afetar, diretamente, interesses de terceiros, para efeitos da composição da instância.
Assim, é admitida, no nosso Código do Processo nos Tribunais Administrativos, a figura dos contrainteressados, enquanto, nos termos do artigo 10.º, n.º1 CPTA, “pessoas ou entidades titulares de interesses contrapostos aos do autor”. Esclarece Francisco Paes Marques(1) que o entendimento jurisprudencial e doutrinário maioritário é o de que o objetivo deste preceito seria o de atribuir legitimidade pessoal aos contrainteressados, que deverão formar litisconsórcio necessário passivo com a Administração.
Descendo ao nível das disposições especiais, e no que toca à ação administrativa impugnatória de atos administrativos, regulada nos artigos 50.º ss. do CPTA, há que atentar ao artigo 57.º(2), quando prevê a participação dos contrainteressados, determinando que estes são obrigatoriamente demandados quando o provimento do processo impugnatório possa diretamente prejudicá-los ou quando tenham legítimo interesse na manutenção do ato impugnado e, cumulativamente, possam ser identificados em função da relação material em causa ou dos documentos contidos no processo administrativo. Quando entramos, por outro lado, no âmbito das ações administrativas de condenação à prática do ato devido, temos de observar o disposto no artigo 68.º, n.º2, que prevê uma disposição idêntica, mas, naturalmente, adaptada à natureza da ação em causa.
Devem assim, os contra interessados, ser demandados, obrigatoriamente(3), nos termos legalmente estabelecidos. No entanto, para que consigamos estabelecer qual a sua identidade, de modo a cumprir com esta disposição, é necessário saber como proceder para tal, uma vez que, como é lógico e expectável, estes não são sujeitos na relação material controvertida como traçada pelo autor — encontram-se quase que umbilicalmente ligados à mesma, mas não é por via desta que adquirem a sua legitimidade. Assim, e para que consigamos apurar quem ou quais os interessados num determinado caso, de modo a que possam ser demandados, como é legalmente exigido, sempre que possível, será necessário efetuar um juízo de prognose, no sentido de saber, tendo em conta o potencial desfecho do litígio, e os termos em que a pretensão foi formulada pelo autor, quais os sujeitos que podem daí ser diretamente prejudicados pelo provimento do processo. Neste sentido, temos o Ac. STA (Lino Ribeiro), proc. 0115/13, de 14-02-2013. Este juízo de prognose deverá ser abstrato.
Deste modo, posta a identificação dos contrainteressados, e sendo estes demandados, a lei exige um litisconsórcio necessário passivo nas situações que vimos já, no âmbito dos artigos 57.º e 68.º, n.º2, e, neste cenário, o contrainteressado, apesar de possuir um interesse coincidente com o do réu, atuará de forma autónoma e independente, do ponto de vista processual(4).
Outro aspeto importante, a referir, será o de que, nos termos do artigo 155.º, n.º2 do CPTA, é concedida aos contrainteressados legitimidade para requerer a revisão da sentença transitada em julgado, nos termos previstos no artigo 154.º. Tratar-se-á de uma exceção ao princípio da estabilidade, podendo ainda ser contrário ao princípio da segurança jurídica, fundada na extração da sentença. Assim, sua utilização deve ser limitada aos casos graves e que justifiquem o sacrifício do princípio da intangibilidade das decisões. De acrescentar que, sendo um recurso extraordinário, permite que se impugnem decisões já julgadas e que estas possam ser alteradas, como é ademais mencionado no artigo 156.º, n.º2, in fine.
Quanto ao papel que desempenham, Vasco Pereira da Silva diz-nos que aqueles a quem o provimento do processo impugnatório (ou condenatório) possa diretamente prejudicar ou que tenham interesse legítimo na manutenção do ato impugnado, ou seja, os contrainteressados serão sujeitos principais na relação jurídica multilateral, intervindo nesses termos no processo administrativo — o que significaria que não seriam meros terceiros participantes em processo alheio. Não parece ser esse o entendimento maioritário.
Cumpre assim, posta esta (brevíssima) exposição, tomar uma posição quanto à relevância e função desta figura no nosso ordenamento. Se é um facto que a regulamentação do CPTA é parca nesta matéria, não só quanto à delimitação da figura, como também aos poderes e direitos que lhe são conferidos, o facto é que se trata de uma figura de extrema relevância, uma vez que, apesar de não estar configurado como sujeito da relação material controvertida, o peso do contrainteressado ultrapassa essa barreira: estas pessoas ou entidades são titulares dos ditos interesses contrapostos aos do autor, e ficando suscetíveis de verem as suas posições jurídicas, porventura, afetadas pela eventual sentença exarada pelo tribunal no processo a decorrer, faz todo o sentido que sejam, nos termos da lei, obrigatoriamente demandados, tendo assim hipótese de, segundo a conceção subjetivista aflorada acima, defender a sua posição e os seus interesses em sede própria. Não fossem os contrainteressados demandados e ser-lhes-ia tirada esta oportunidade de defesa dos seus direitos, pela via jurisdicional — uma visão subjetivista do Contencioso Administrativo nunca se coadunaria com esta possibilidade.
Assim, entendemos que o legislador, ao consagrar esta figura nos moldes em que o faz, pretendeu dar palco à defesa de interesses inicialmente, a princípio, alheios ao processo (devido à configuração da situação material controvertida pelo autor), dando assim relevo a estes interesses, como concordamos ser correto, uma vez que não seria tolerável que os mesmos não pudessem ter algo a dizer quanto à pretensão do autor, seja ela impugnatória, ou condenatória, nos termos acima expostos.
(1) Francisco Paes Marques, Conflitos ente Particulares no Contencioso Administrativo, Almedina (2019);
(2) Refere Francisco Paes Marques que apenas o artigo 10.º do CPTA revela uma dimensão de verdadeira legitimidade processual, porquanto no artigo 57.º o legislador, “adotando como ângulo de análise os efeitos da sentença (e secundariamente o acto impugnado), tentou circunscrever a posição daqueles sujeitos que terão interesse em contradizer a posição do autor, ou seja, que se encontram habilitados a vir a juízo porque o aparelho jurisdicional vai ser mobilizado com vista à eliminação de uma vantagem que lhes foi reconhecida ou atribuída”. Esta delimitação, prossegue o autor, não tem em conta a “colisão substancial” ou material entre posições jurídicas, mas sim a utilidade que o autor pretende retirar da sentença, quando contraposta à frustração dos interesses dos contrainteressados.
(3) Entende-se a obrigatoriedade estabelecida pela lei, uma vez que, como bem refere Mário Aroso de Almeida, os contrainteressados, têm o direito de não serem deixados à revelia do processo em que se aborda a subsistência ou não da colocação na ordem jurídica do ato que lhes diz diretamente respeito.
(4) Processo nº 74/2015-A, CAAD, de 21 de outubro de 2015
Bibliografia:
- Francisco Paes Marques, Conflitos ente Particulares no Contencioso Administrativo, Almedina (2019);
- Francisco Paes Marques, Os contrainteressados na impugnação de actos de gestão urbanística in Processo Administrativo, Formação contínua do CEJ (setembro de 2020), pp. 9-34;
- Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, 4.ª ed. Almedina (2020);
- José Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa, 7.ª ed. Almedina (2019);
Filipa da Costa e Silva, n.º58470
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