A tutela cautelar no contencioso das normas regulamentares
A justiça é, geralmente, lenta. Dada a complexidade de um processo, «o caminho para a
obtenção de uma decisão judicial definitiva é, por via de regra, longo, sinuoso
e moroso», sendo que esta demora «constitui um defeito constitucional, um custo
inevitável do processo judicial»[1]. Face a esta
idiossincrática caracterização da justiça, é necessário assegurar que o tempo
não corrói a tutela jurisdicional efectiva e o direito a que o autor se arroga.
Como refere CHIOVENDA, citado na lição de MIGUEL
TEIXEIRA DE
SOUSA,
«o processo deve dar, na medida do praticamente possível, a quem tem um direito
tudo e precisamente aquilo a que ele tem direito»[2]. A tutela cautelar surge,
pois, neste contexto de se assegurar o efeito útil da acção (na acepção dada
pelo art. 2.º, n.º 2, do CPC), de modo a que o decurso do tempo não implique
uma inutilidade posterior da lide, nem tão-pouco o deterioramento do direito
invocado pelo autor.
No processo administrativo, foi com a revisão
constitucional de 1997 que a protecção cautelar dos interessados assumiu um
maior relevo, ao garantir, de forma expressa, que o princípio da tutela
judicial efectiva se alargava à adopção de medidas cautelares[3]. Sem prejuízo de uma
análise mais profunda ao regime das providências cautelares consagrado no nosso
código de processo, dedicaremos a nossa exclusiva atenção à tutela cautelar em
acções relativas a impugnação de normas emanadas ao abrigo de disposições de
direito administrativo.
O art. 73.º do CPTA consagra, no âmbito da impugnação de
normas regulamentares, três pedidos distintos: a declaração de ilegalidade com
força obrigatória geral, a declaração de ilegalidade com efeitos circunscritos
ao caso concreto ou a desaplicação da norma, quando suscitada incidentalmente
no processo dirigido contra o acto de aplicação, no caso de o regulamento ser
mediatamente operativo. Interessa-nos, para o presente texto, os dois primeiros
pedidos, porquanto são estes que suscitam particularidades e dúvidas no regime
cautelar correspondente (o CPTA não prevê qualquer providência cautelar
dependente do controlo incidental de regulamentos). A declaração de ilegalidade
com força obrigatória geral nunca se pode fundar numa inconstitucionalidade
directa, visto que o conhecimento desse pedido estar sujeito à jurisdição do
Tribunal Constitucional (art. 72.º, n.º 2, do CPTA). No entanto, o art. 73.º,
n.º 3, do CPTA, admite que o interessado requeira a declaração de ilegalidade
quando esteja em causa um dos fundamentos de ilegalidade previstos no art.
281.º da CRP, sendo que os efeitos dessa declaração se cingem ao caso concreto.
Na pendência (ou na iminência) de uma acção de impugnação
de normas, o interessado pode requerer providência cautelar de suspensão da
eficácia de normas (providência cautelar nominada, nos termos dos arts. 112.º,
n.º 2, al. a) e 130.º do CPTA), em caso de periculum in mora, i.e., em
caso de fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da
produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que o requerente
pretende salvaguardar no processo principal (art. 120.º, n.º 1, do CPTA).
A particularidade que a tutela cautelar assume no âmbito
do contencioso de normas regulamentares assenta nos seus efeitos, consoante o
pedido formulado pelo autor. Ora, como refere ANA
RAQUEL
GONÇALVES
MONIZ,
«[a] existência de dois meios de impugnação, a título principal, de normas
regulamentares pareceria, à primeira vista, acompanhada pela associação a duas
formas de suspensão da eficácia – com força obrigatória geral e com efeitos
circunscritos ao caso»[4]. Todavia, esse não foi o
entendimento do legislador.
O art. 130.º, n.º 1, do CPTA confere legitimidade ao
interessado na declaração da ilegalidade da norma regulamentar para requerer a
suspensão da eficácia dessa norma, suspensão essa que apenas terá efeitos
circunscritos ao seu caso, mesmo que o pedido por ele deduzido tenha sido o
previsto no art. 73.º, n.º 1, do CPTA (declaração de ilegalidade com força
obrigatória geral).
Já o art. 130.º, n.º 2, do CPTA confere legitimidade ao
Ministério Público, bem como aos actores populares, nos termos do art. 9.º, n.º
2, do CPTA, para requerer a suspensão de eficácia de normas com força
obrigatória geral, desde que tenha subjacente um pedido de declaração de
ilegalidade com força obrigatória geral. JORGE
PAÇÃO
acrescenta, a este leque de requerentes, os presidentes de órgãos colegiais, em
relação a normas emitidas pelos respectivos órgãos, em harmonia com a
legitimidade para o pedido de declaração de ilegalidade com força obrigatória
geral[5]. ANA
RAQUEL
GONÇALVES
MONIZ
estende
o leque de legitimidade para requerer a suspensão da eficácia das normas aos actores
populares locais, nos termos dos arts. 73.º, n.º 1, al. d) e 55.º, n.º 2, do
CPTA[6].
O legislador entendeu que seria algo excessivo, na
expressão de JORGE PAÇÃO,
admitir que os particulares, a título individual pudessem apresentar pedido de
suspensão da eficácia de normas com força obrigatória geral. De facto, não se
compreende que um particular (rectius: que a pretensão do particular)
tenha força suficiente para suspender a eficácia de normas regulamentares, que
têm eficácia erga omnes, podendo mesmo ter âmbito nacional. Relembre-se
que o tribunal, quando conhece da procedência da providência cautelar,
baseia-se num juízo de verosimilhança ou de probabilidade, não se exigindo um
elevado grau de prova, mas apenas uma summaria cognitio que confira uma
manifestação de aparência de um direito, de um fumus boni iuris – a
urgência que é característica das providências cautelares não se coaduna com
uma análise exaustiva acerca da sua procedência. Nesta conformidade, mal se
compreendia que um tribunal, apenas ponderando a mera aparência de um direito,
pudesse suspender a eficácia de um regulamento, que é geral e abstracto.
Neste sentido, ANA RAQUEL
GONÇALVES
MONIZ
refere que o legislador «valorizou, além da proporcionalidade da solução, o
facto de, desta forma, os interessados verem facilitada a prolação de uma
sentença favorável, porquanto o tribunal não terá de ponderar os efeitos (muito
mais pesados) que uma suspensão do regulamento com eficácia erga omnes
poderia comportar para o ordenamento jurídico»[7].
Repare-se que esta redução do âmbito da providência
cautelar face à acção principal em nada afecta o princípio da tutela
jurisdicional efectiva, visto que o particular verá sempre a sua pretensão
suspensiva assegurada, ainda que com efeitos circunscritos ao seu caso. O
particular está em juízo para fazer valer a sua posição jurídica subjectiva,
não tendo atribuições de defesa da legalidade democrática e do interesse
público, nem atribuições ao nível de interesses difusos e locais, pelo que em
nada fica afectado o seu direito à tutela cautelar.
O regime da suspensão da eficácia de normas manda
aplicar, por via do art. 130.º, n.º 4, do CPTA, as disposições relativas à não
execução do acto após a citação pelas entidades administrativas ou
pelos beneficiários do acto (art. 128.º, n.º 1, do CPTA).
Refere TIAGO AMORIM,
a propósito desta norma, que «esta especificidade poderia revestir séria
utilidade e importância, porque a suspensão prática dos efeitos do acto ou da
norma representaria uma forte garantia dos direitos dos particulares face à
intrusão da Administração Pública na esfera dos seus direitos ou interesses
legítimos»[8]. No entanto, esta regra é
mitigada pela possibilidade de a entidade administrativa remeter ao tribunal
uma resolução fundamentada, nos termos da qual reconheça que o diferimento da
execução seria gravemente prejudicial para o interesse público. TIAGO
AMORIM
refere que há uma tendência de abuso destas resoluções fundamentadas, o que
obsta à protecção efectiva dos interesses dos lesados: «a proibição legal de
início ou prosseguimento do acto ou norma é, na prática, ‘letra morta’»[9]. Face a uma resolução
fundamentada, o tribunal vai julgá-la procedente ou improcedente, quando seja
indevida ou quando as razões aduzidas pela entidade administrativa não sejam
suficientes. No entanto, para que o tribunal conheça dessa resolução
fundamentada, o particular terá de suscitar a questão, visto que a lei não
prevê a impugnação dessa resolução fundamentada no processo – VIEIRA
DE
ANDRADE
fala numa “providência cautelar secundária”, que só pode ser iniciada até à
decisão definitiva do processo cautelar[10].
Relativamente a esta questão, estamos entre a espada e a
parede. A opção do legislador em assumir que a entidade administrativa possa,
através de resolução fundamentada, executar o acto ou a norma suspensa é
manifestamente infeliz, visto que desprotege o particular face a uma actuação
agressiva da Administração. Por outro lado, suscita sempre dúvidas o facto de
os tribunais poderem interpretar (mais ou menos livremente) o conceito de
interesse público. TIAGO AMORIM
refere que «o legislador do CPTA rompe (a nosso ver, bem) com a doutrina
tradicional dos conceitos indeterminados de prognose no direito administrativo:
o tribunal pode e deve controlar se uma determinada medida é ou não prejudicial
para o interesse público»[11]. Salvo o devido respeito,
não somos da mesma opinião. Seguindo a lição de SÉRVULO
CORREIA,
o poder dos tribunais sindicarem conceitos indeterminados proprio sensu
(e não conceitos com meras incertezas de linguagem ou interpretativas) é um
poder reduzido, bastando-se pela averiguação da legalidade e não da bondade da
decisão, «apenas lhe[s] cabendo um controlo pela negativa (designadamente de
inadequação do critério da avaliação ou prognose, ou seja, erro grosseiro ou
manifesto de apreciação, que constitui a violação da primeira das três
vertentes do princípio da proporcionalidade)»[12]. Nesta conformidade, o
tribunal não vai preencher o conceito de interesse público, visto que essa
tarefa cabe exclusivamente à Administração Pública, mas vai colocar a resolução
fundamentada sob o crivo do princípio da proporcionalidade, analisando se os
argumentos aduzidos pela entidade administrativa consubstanciam erros
grosseiros de apreciação. É certo que, para certa doutrina, é justificado que
«o juiz administrativo seja particularmente exigente quando é chamado a
proceder à fiscalização dos fundamentos em que se sustentam as resoluções
emitidas»[13].
No entanto, cremos que a chave está na fundamentação dada pela Administração: o
tribunal não vai dizer o que é ou o que não é conforme o interesse público, mas
pode indeferir a resolução caso esta seja manifestamente insuficiente ou vaga.
Desta forma, não se dá azo a que a entidade administrativa possa executar o
acto ou a norma refugiando-se no lato conceito de interesse público, sem
densificar as razões atinentes à necessidade de execução: não há um controlo da
interpretação do conceito indeterminado, apenas um controlo da sua legalidade,
mormente no que respeita à sua conformidade com o princípio da
proporcionalidade, nos termos do art. 7.º do CPA.
De jure condendo, o conteúdo desta norma é algo
atentatório da protecção conferida aos particulares pela tutela cautelar, pelo
que o legislador deveria ter acautelado melhor as situações em que a suspensão
afectaria a prossecução do interesse público, mormente em situações de estado
de necessidade administrativa[14]. Na mesma medida, o
legislador deveria ter sido mais claro quanto ao conteúdo do art. 128.º, n.º 1,
do CPTA, porquanto não é certo se os “beneficiários do acto” podem remeter ao
tribunal uma resolução fundamentada – em nossa opinião, a resposta será
negativa, visto que os beneficiários do acto, enquanto privados, não têm em
conta o interesse público na sua actuação, pelo que não podem requerer a
execução do acto ou norma alegando que o seu diferimento seria prejudicial para
o interesse público. De jure condito, cremos que é preciso alguma
cautela quanto à interpretação do conceito de interesse público, visto que,
como vimos, os poderes cognitivos do tribunal são limitados à verificação de
erros grosseiros de apreciação.
José Maria Vilela
[2] GIUSEPPE CHIOVENDA,
in Rivista del Diritto Commerciale (1911-1), p. 103, apud MIGUEL TEIXEIRA DE
SOUSA, As providências cautelares e a
inversão do contencioso, disponível em https://www.fd.unl.pt/docentes_docs/ma/PCN_MA_25215.pdf,
p. 1.
[3] Antes
da revisão constitucional, diz VIEIRA DE ANDRADE que, «[n]esta matéria de meios ou de
processos cautelares, a situação anterior a 2002 era, pode dizer-se, uma
situação catastrófica: os meios cautelares estavam reduzidos praticamente à
suspensão da eficácia do acto, tal como também, em grande medida, o contencioso
se reduzia ao recurso contencioso de anulação» (in Justiça Administrativa –
Lições, 14.ª ed, Coimbra: 2015, p. 287).
[4] ANA RAQUEL GONÇALVES MONIZ,
O controlo judicial do exercício do poder regulamentar, in Comentários
à legislação processual administrativa, 5.ª ed., Lisboa: 2020, pp. 221-222.
[5] JORGE PAÇÃO,
Breves notas sobre os regimes especiais de tutelar cautelar no Código de
Processo nos Tribunais Administrativos revisto, in e-Pública, vol. 3, n.º
1, Abril de 2016, p. 120.
[8] TIAGO AMORIM,
A tutela cautelar, in Comentários à legislação processual
administrativa, 5.ª ed., Lisboa: 2020, p. 711.
[12] J. M.
SÉRVULO CORREIA,
Conceitos jurídicos indeterminados e âmbito do controlo jurisdicional, in
Escritos de Direito Público, vol. I, Coimbra, p. 93.
[13] MÁRIO AROSO DE ALMEIDA/CARLOS ALBERTO
FERNANDES CADILHA,
Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 3.ª ed.,
Coimbra: 2010, pp. 856-857
[14] A
doutrina tem entendido que o deferimento da resolução fundamentada e
consequente levantamento da proibição de execução do acto ou da norma apenas
tem lugar em situações excepcionais, em que há uma necessidade absoluta de se
proteger o interesse público, em detrimento dos interesses dos particulares acautelados
pela proibição da execução. Neste sentido, v. MÁRIO
AROSO DE
ALMEIDA/CARLOS
ALBERTO FERNANDES CADILHA, op. cit.,
p. 856.
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