O Processo Administrativo Eletrónico: Das oportunidades em tempos difíceis

Ana Margarida Camacho Fernandes | Aluna nº58533 

Ano 4 | Turma A | Subturma 5 


Nota prévia:

A era da digitalização, aliada à atual conjuntura de exceção, impõe ao legislador e aos profissionais forenses uma adaptação em tempo recorde. A tramitação do Processo por via Eletrónica é uma modernização anterior a 2019 que encontra na atual conjuntura uma importância acrescida, afinal é o modelo que impede que a justiça pare. Deste modo, esta é a grande oportunidade para o SITAF acompanhar o sistema paralelo (CITIUS), corrigindo deficiências, tendo sempre em vista a celeridade, a simplificação e a transparência.

 

1.Introdução

A tramitação dos processos é efetuada eletronicamente no SITAF (Sistema Informático de Suporte à Atividade dos Tribunais Administrativos e Fiscais). Este sistema dispõe de módulos específicos para a tramitação do processo e a prática de atos por juízes, magistrados do Ministério Público e oficiais de justiça, e para a prática de atos e consulta de processos por mandatários e representantes em juízo.
          
O art.24º/nº1 CPTA consagra, de forma inequívoca, o processo administrativo eletrónico como modelo-regra, cuja regulação é efetuada pela Portaria n.º 380/2017, de 19 de dezembro (art.24º/nº1/última parte). O preceito atual resulta de uma alteração da Reforma de 2019 que substituiu a anterior modelo-preferência pelo que, atualmente, o processo físico é residual como comprova o art.24º/5 e 6.

2. A tramitação do processo (não urgente) comum: da (una) ação administrativa 

            2.1. Em tempos de normalidade
                   
2.1.1.Articulados e conexos

o   Petição Inicial e Contestação

O art.78º/1 CPTA1determina a constituição da instância com a receção da Petição Inicial pela secretaria. Este primeiro articulado, nos termos do nº2, deve conter uma série de requisitos. No entanto, parece não compatibilizar-se  com o novo modelo (art.24º). O ‘’recebimento pela secretaria’’ pressupõe o caráter físico, agora ultrapassado pela realidade do sistema informático, a denominada ‘’informação estruturada’’, que pressupõe o preenchimento obrigatório dos campos integrantes do formulário (nº2). Pelo que o sentido literal leva a uma repetição, daí que a interpretação deva ter em conta o art.80/3º sobre a recusa no contexto eletrónico (efetuada pelo próprio sistema).

O 78º/4 repete-se, remetendo para o modelo antigo, uma vez que o formulário cujos campos são de preenchimento obrigatório compreende, justamente, o rol das testemunhas. É desnecessária a repetição no fim da Petição Inicial.

Quanto ao segundo articulado- a Contestação(art.82 e 83º)- levanta-se o mesmo problema relativamente aos meios de prova quanto à repetição  (campo de preenchimento obrigatório do formulário e/ou no fim da contestação que segue em anexo ).

Relativamente aos problemas supra mencionados, há que refletir sobre as consequências decorrentes.No entanto, o art.80º/nº3 parece auxiliar, ao dispor que ‘’informação estruturada’’ prevalece sobre o próprio articulado.

o   Citação 

De acordo com o art.81º/nº1, ‘’recebida a petição, incumbe à secretaria promover a citação dos demandados’’. Há que proceder a uma interpretação atualista (isto, através da conjugação entre o nº2 e o nº1 e os preceitos constantes na Portaria) que faz concluir pela falta de caráter absoluto que à primeira vista parece possuir, dada a redução da intervenção da secretaria.

citação (25º/1) até 2019, devia ocorrer de modo eletrónico logo, automático(mas outros meios eram possíveis art.81º/nº1 e nº 2 CPTA) e sem necessidade de despacho de juiz (exceto se despacho liminar).Quanto se trate de citação edital, o art.21º da Portaria determina a publicação em sítio eletrónico.

 

o   Distribuição

distribuição é automática e eletrónica (solução anterior à revisão de 2019) e é efetuada diariamente (art.26º/nº1 conjugado com o art.13º/1 da Portaria) e é publicada em endereço eletrónico próprio (art.15º da Portaria). É positivo o alerta ao respeito dos princípios da imparcialidade e do juiz natural (26º/2).

 

2.2.2.      Notificação

De acordo com o art.25º/ nº3CPTA,  modificado na Revisão de 2019,  a ‘’notificação ..realiza-se por via eletrónica’’, revelando o caráter imperativo que denota a consideração do novo modelo pelo legislador. Este preceito deve conjugar-se com o art.23º/nº1 da Portaria, que define os meios eletrónicos enquanto sistema informático de suporte para efeito de notificação entre mandatários que é declarada de modo automático, eliminando-se desta forma burocracias que atrasam o processo. Relativamente ao prazo, pressupõe-se que a notificação não é feita em termos imediatos, considerando o primeiro dia do prazo o imediatamente seguinte à data ao da certificação da data de elaboração ou o terceiro dia posterior ao envio.

 

2.2.3.     Decisão

As sentenças (decisão singular) e acórdãos (decisão coletiva) são registados no sistema informático, de forma automática( 94º/6). A portaria regulamenta esta matéria no art.27º-A, no entanto, carece de concretização, especificamente quanto relacionada com publicidade do processo e decisões (art.30º/nº2 CPTA). Especificamente quanto às decisões proferidas em tribunais administrativos de círculo, envolta ainda em grande mistério2.


2.2.Período transitório

No contexto da situação epidemiológica provocada pelo novo coronavírus, surgem medidas excecionais e transitórias. Quanto ao tema em análise, releva a Lei 1-A/ 2020, alterada, entretanto, por via da Lei 4-A/2020. 

De acordo com o disposto no art.7º (nº1 da Lei 1-A) quanto aos prazos, aplicava-se o regime das férias judiciais até à cessação da situação excecional, constituindo ainda causa de suspensão de prazos de prescrição e caducidade relativos a todos os tipos de processos (nº3). O nº8 deste mesmo artigo dispõe que sempre que seja tecnicamente viável, é admitida a prática de atos processuais através de meios de comunicação à distância (teleconferência ou videochamada), pelo que o processo eletrónico assume-se como imprescindível ao andamento da justiça administrativa.

No entanto, a Lei 4-A/2020 veio dar uma nova redação a este artigo 7º, dispondo que, quando todas as partes entendam ter condições para assegurar a prática através de plataformas informáticas ou meios de comunicação à distância é possível seguir a tramitação do processo. Além de útil para as partes, é extremamente conveniente para o tribunal3. 


            3.Considerações Finais

            A ‘’era digital’’ instituiu um novo paradigma, tornando imperativa a adoção de novos métodos, pelo que é de congratular o modelo instituído. A desmaterialização torna o processo menos dispendioso ao nível dos recursos (monetários, como as custas e os ligados à sustentabilidade); é também um passo para a desburocratizarão, pois dispensa-se uma série de atos e, consequentemente, revela-se mais célere pelo envio e acesso à informação do à distância de um ‘’clique’’4.

No entanto, a consagração do modelo eletrônico suscita uma série de questões ao intérprete-aplicador. Do ponto de vista do direito constituído, coexistem soluções baseadas em ambos os modelos pelo que, no direito a constituir, devem ser revistas de forma a alcançar a harmonia normativa que se pretende.

Há ainda uma preocupação acrescida sobre a publicidade integral das decisões, ainda envolta em ‘’secretismo’’ que coloca em causa o princípio da transparência (que é pedra basilar do sistema) e tem consequências práticas decorrentes do ‘’mistério’'.Se não é acessível a totalidade das decisões, não são detetáveis divergências, impedindo-se a uniformização (e coerência) de jurisprudência. Quanto a isto, o novo modelo poderá auxiliar. 

No contexto da crise pandémica atual, e tendo em conta o volume estrondoso de processos (que apenas tende aumentar), não é possível suspendê-los e aguardar pelo fim da pandemia para retomar sem tal significar prejuízos sérios para todas as partes envolvidas. É necessário agir, utilizando os meios pré-existentes (adaptando-os) ou criando outros, procurando garantir a capacidade de gestão processual. 


            4.Bibliografia / Webgrafia

Serrão, Tiago. (2020)’’Processo eletrónico e ação administrativa: breves reflexões’’. Em: Revista do Ministério Público 161: pp.77 -98

Aroso de Almeida, Mário. (2020) ‘’Manual de Processo Administrativo’’, 4º edição, Almedina

https://portal.oa.pt/upl/%7B02b155fe-6608-4899-9e7b-a4a71e5e1995%7D.PDF

https://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/28733/1/RodrigoViveirostesefinal.pdf

https://www.youtube.com/watch?v=p7mgvBxUfBs

 

1Os artigos, quando não disponham de qualquer referência, referem-se ao Código de Processo dos Tribunais Administrativos (CPTA)

2Como alertado pelo Professor Tiago Serrão. Especificamente, quanto às decisões preferidas em Tribunais de 1º Instância. 

3Se há meios que asseguram a continuidade do processo, não há razão para esperar o fim do período excecional e o regresso à ''normalidade''. A espera, a acontecer, traria consequências desastrosas, pois significaria uma acumulação desmedida e, por isso, um arrastamento (ainda mais) prolongado.

4Relativamente aos aspetos mais negativos, aponte-se os investimentos astronómicos necessários para combater o crime informático (paralelamente, esta é também a era do cibercrime). A segurança das plataformas estatais e a proteção dos dados  nelas constantes é fulcral para a manutenção deste modelo. 

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