CHEGA e a Limitação de Circulação entre Concelhos: Intimação para Proteção de Direitos, Liberdades e Garantias


No passado mês de outubro, o Governo, em resposta à acelerada propagação da Covid-19, decretou determinadas medidas de restrição à circulação entre diferentes concelhos do território continental, tendo sido limitada a circulação entre os mesmos no período entre as 00h00 de 30 de outubro e as 06h00 de dia 3 de novembro de 2020[1]. 

Considerando a medida inconstitucional, desadequada e desproporcional, o partido político CHEGA intentou, ao abrigo do artigo 109º do CPTA, uma intimação para proteção de direitos liberdades e garantias, contra a Presidência do Conselho de Ministros e o Estado português, solicitando que o Supremo Tribunal Administrativo revogasse as medidas adotadas na Resolução do Conselho de Ministros, e que fossem tomadas todas as medidas necessárias para obstar à sua produção de efeitos[2].

Constituem processos urgentes as formas especiais de processo, previstas no Título III do CPTA, instituídas em razão da urgência na obtenção de uma pronúncia sobre o mérito da causa por forma mais célere do que a que resulta da tramitação da ação administrativa[3], dado não poderem, ou não deverem, ser dirimidas no tempo considerado normal para a generalidade dos processos.

Para além disso, não se revela, para estes processos, suficiente ou adequada, uma proteção cautelar que, através de medidas conservatórias ou antecipatórias (112º/1 CPTA), regule provisoriamente a situação em termos de poder assegurar a utilidade da sentença produzida em tempo normal[4]. 

É dentro desta categoria de processos urgentes que encontramos a figura das intimações – processos urgentes de condenação, que visam a imposição judicial, em regra dirigida a Administração, da adoção de comportamentos e prática de atos administrativos[5]. E é por fim aqui que se insere a intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias, prevista nos artigos 109º e seguintes do CPTA. 

Como fundamentação para as suas pretensões o partido alega que a proibição de circulação apenas poderia ser decretada em estado de sítio ou de emergência e que a mesma constitui uma “gritante limitação ao exercício de direitos, liberdades e garantias dos cidadãos constitucionalmente protegidos” violando, nomeadamente, o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º da CRP), o princípio da universalidade (art. 12º CRP) e o princípio da igualdade (art. 13º CRP).

Citado[6], o Conselho de Ministros impugna o alegado pelo requerente recorrendo aos seguintes argumentos[7]:

i)               Ilegitimidade Passiva da Presidência do Conselho de Ministros

ii)             Impropriedade do Meio Processual

Assim, tendo o Estado Português sido absolvido da instância por ilegitimidade passiva (10º/nº1 CPTA), e dado que os pedidos formulados pela requerente se dirigem ao Estado Português (suposto titular do interesse em conflito), a presente intimação deixaria de ter sujeitos passivos, pelo facto de a requerida não ser titular da relação material controvertida. Contudo, o Tribunal considera que não lhe assiste razão. De facto, estamos no âmbito de um processo urgente de intimação, em que os poderes de direção processual do juiz (7º-A do CPTA) surgem especialmente reforçados (110º e 110º-A do CPTA), tendo em vista assegurar o efeito útil da decisão (111º), pelo que se impõe um certo escrutínio dos pressupostos processuais, cum grano salis.

Relativamente à impropriedade do meio processual, o Conselho de Ministros alega que a requerente não podia lançar mão da intimação para a proteção de direitos, liberdades e garantias com o intuito de obter a declaração de ilegalidade da norma com efeitos pessoais, uma vez que a intimação apenas pode ter como resultado uma sentença condenatória e não pode ser utilizado como meio impugnatório. E mais uma vez o STA nega razão à recorrida dada a intencionalidade do legislador com a introdução deste meio processual tão elástico – dar cumprimento ao artigo 20º/nº5 CRP.

Mas foquemo-nos agora na exceção dilatória invocada pela demandada no acórdão 0122/20.1BALSB – a ilegitimidade ativa do partido CHEGA. 

A legitimidade para interpor uma intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias pertence, naturalmente, aos titulares dos direitos, liberdades e garantias em questão, ainda que se possa admitir a ação popular, que também inclui a ação do Ministério Público[8].

Na sua qualidade de partido político, pessoa coletiva associativa de direito privado, nunca poderá o requerente ser titular de nenhum dos direitos fundamentais que tenta proteger. Tal não é, aliás, ontologicamente possível, como retiramos do artigo 12º/nº2 da CRP (“compatíveis com a sua natureza”).

Para além disso, não nos parece que o partido poderia agir aqui ao abrigo da ação popular. Parte da doutrina[9], aqui apoiada pela jurisprudência, defende que deverá ser afastada a possibilidade de a intimação poder ser deduzida no âmbito do direito de ação popular uma vez que esta última é uma ação de caráter exclusivamente subjetivista e que o âmbito da intimação é constituído por direitos estruturalmente individuais, não havendo, portanto, legitimidade popular para intentar pedidos de intimação.

Por fim a Lei dos Partidos Políticos não prevê, no elenco de «direitos dos partidos políticos» (art. 10º), o direito de intervenção judicial em defesa dos cidadãos.

Assim, e em tom de conclusão, o STA acaba por julgar procedente a exceção de ilegitimidade ativa do requerente e consequentemente absolver da instância a entidade demandada (278º/nº1/al. d) do CPC, ex vi artigo 1º do CPTA).

  

 João Pedro Andrade Campos

Turma A, subturma 5

Nº de aluno: 58208

 

 



[1] Resolução do Conselho de Ministros n.º 89-A/2020

[2] Acórdão 01958/20.9BELSB, de 31/10/20, do STA

[3] AROSO DE ALMEIDA, Mário, Manual de Processo Administrativo, 2016, 2ª edição, Almedina, páginas 387 e 388

[4] VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos, A Justiça Administrativa (Lições), 10ª edição, Almedina, página 254

[5] VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos, A Justiça Administrativa (Lições), 10ª edição, Almedina, página 270

[6] Decidiu-se, no acórdão 01958/20.9BELSB, de 31/10/20, do STA, absolver o Estado da instância (dado tratar-se de parte ilegítima, de acordo com o disposto no artigo 10º/nº1 do CPTA) e mandar citar a entidade demandada (Presidência do Conselho de Ministros)

[7] Acórdão 0122/20.1BALSB, de 31/10/2020, do STA

[8] VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos, A Justiça Administrativa (Lições), 10ª edição, Almedina, página 279

[9] AROSO DE ALMEIDA, FERNANDES CADILHA E AMADO GOMES

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