Contencioso da Ilegalidade de Normas

 Desde 1997 que consta expressamente da Constituição da República Portuguesa (doravante CRP) no art. 268º nº5, como direito fundamental dos cidadãos, o direito de impugnação judicial de normas administrativas que sejam lesivas de direitos ou interesses legalmente protegidos dos particulares.

A regulação processual da impugnação judicial de normas administrativas foi sendo objeto de avanços e recuos, sendo prevalentemente invocado contra a consagração da impugnação judicial de normas a ideia de que estando em causa normas gerais e abstratas e por isso, em princípio, insuscetíveis de produzirem lesões imediatas aos particulares, a lesão resultaria do ato de aplicação da norma e este sim, seria sindicável. Mais recentemente, muito devido à verificação da efetiva lesividade imediata de muitos atos normativos, este argumento deixou de proceder. Além do mais, a favor da consagração da impugnação de normas depõem as ideias de certeza, segurança jurídica e economia processual visto que se evita a multiplicação de processos acerca da ilegalidade da mesma norma.

Nos termos do art. 72º nº1 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos ( doravante CPTA), a impugnação de normas[1] no contencioso administrativo tem por objeto a declaração da ilegalidade dessas mesmas normas.

O art. 73º CPTA admite a impugnação direta de normas com vista a obter a declaração de invalidade da mesma com força obrigatória geral (nº1) ou a sua desaplicação num caso concreto (nº2). Além destas, há a possibilidade de invocar indireta e incidentalmente a ilegalidade da norma num caso concreto nos processos de impugnação de atos que as tenham aplicado, tendo em vista a anulação desses atos (nº3).

A opção entre cada um dos regimes assenta na distinção entre normas imediatamente operativas e normas mediatamente operativas. As primeiras prescindem de qualquer ato administrativo de aplicação, produzindo os seus efeitos na esfera jurídica dos destinatários sem necessidade de um ato de aplicação enquanto as segundas apenas produzem os seus efeitos relativamente os destinatários através de um ato de aplicação.

Quanto ao pedido de declaração de ilegalidade com força obrigatória geral, a legitimidade ativa é reconhecida, nas alíneas do nº1 do art. 73º CPTA, a qualquer pessoa que alegue ser prejudicada pela aplicação da norma ou que possa previsivelmente vir a sê-lo em momento próximo, bem como ao Ministério  Público e aos autores populares (nos termos do art. 9º nº2 CPTA), e também, em certos termos, aos presidentes dos órgãos colegiais em relação a normas emitidas por estes últimos e pelas pessoas referidas no nº2 do art. 55º.

Quanto aos fundamentos do pedido de declaração de ilegalidade das normas com força obrigatória geral, este pode alicerçar-se em vícios próprios ou em vícios derivados de atos praticados no âmbito do respeito procedimento de aprovação. Certo é que este pedido não pode fundar-se numa inconstitucionalidade direta, já que esta pretensão não se insere no âmbito da jurisdição administrativa, mas da jurisdição constitucional.

Por sua vez, nos termos do nº2 do art. 73º CPTA, a declaração de ilegalidade da norma com efeitos restritos ao caso concreto (quando os efeitos da norma se produzem sem depender de um ato administrativo), surge em termos estritamente delimitados: só pode ser pedida por quem seja diretamente prejudicado (ou possa vir presumivelmente a sê-lo), apenas quando a norma produza os seus efeitos imediatamente, sem depender de um ato de aplicação e só quando fundamento seja uma ilegalidade prevista no nº1 do art. 281º CRP. Neste âmbito, importa mencionar que a formulação desta norma tem levantado diversas questões.

Em primeiro lugar, e conforme explicita Vieira de Andrade[2], deve entender-se por “fundamentos de ilegalidade previstos no nº1 do art. 281º”, a ofensa a regras e princípios constitucionais ou a violação de estatuto regional, dado que são essas alíneas que incluem normas regulamentares cuja apreciação a título principal cabe ao Tribunal Constitucional.

Por outro lado, alguns autores levantam questões relacionadas com a constitucionalidade do preceito visto que entendem que a reserva de jurisdição do Tribunal Constitucional não se restringe  à declaração de ilegalidade com força obrigatória geral, abrangendo também a declaração de ilegalidade com efeitos restritos ao caso concreto.

Nomeadamente, no sentido da inconstitucionalidade do art. 73º nº2 CPTA, manifestam-se Licínio Lopes e Jorge Alves Correia[3], argumentando que este artigo atribui aos tribunais administrativo a competência para declarar a ilegalidade de normas, ainda que com efeitos restritos ao caso, não existindo a salvaguarda expressa da obrigatoriedade do recuso para Tribunal Constitucional. Estes autores sugerem então uma interpretação do disposto no artigo 73.º, n.º 2, do CPTA em conformidade com o disposto no artigo 280º CRP e artigos 69º e seguintes da Lei do Tribunal Constitucional: a declaração de ilegalidade, com efeitos restritos ao caso, com fundamento em inconstitucionalidade, será de admitir caso se salvaguarde ao Tribunal Constitucional a última na apreciação da matéria de inconstitucionalidade da norma.

Diferentemente, Vieira de Andrade[4] entende que a reserva constitucional de jurisdição do Tribunal Constitucional diz respeito apenas à declaração de inconstitucionalidade de normas com força obrigatória geral, como decorre do art. 281º CPR.  Entende este autor que a desaplicação da norma no caso concreto, nos termos do artigo 73º, nº 2, do CPTA, é passível de recurso para o Tribunal Constitucional, ao qual cabe a última palavra quanto ao julgamento de inconstitucionalidade ou ilegalidade qualificada, nos termos conjugados dos nos artigos 280º nº 1 a) CRP e artigo 70º nº 1 a) da Lei do Tribunal Constitucional.

A favor deste último entendimento depõe o próprio artigo pelo qual iniciámos este texto: o art. 268º nº5 CRP. Quando esteja em causa a lesão de direitos fundamentais é a própria Constituição que estipula a impugnação a título principal de normas administrativas. Interpretando o art. 72º nº2 em conformidade com o art. 268º nº5 CRP não podemos deixar de rejeitar a inconstitucionalidade do preceito.

Por fim, art. 73º nº3 CPTA prevê a impugnação incidental, isto é, admite que se suscite a eventual ilegalidade da norma no processo dirigido contrato o ato administrativo de aplicação, sendo que neste caso a legitimidade ativa é atribuída, no âmbito das alíneas a), ao lesado, ao Ministério Público e às entidades referidas no art. 9º nº2 CPTA.

Este artigo refere-se apenas a atos administrativos de aplicação, mas entende-se que o processo principal em que se pode verificar o incidente de apreciação da legalidade, além de uma ação de impugnação de ato ou de condenação à prática do ato devido, pode ser qualquer litígio que envolva a aplicação do disposto na norma.

No CPTA de 2015, quanto às normas que dependem de atos de aplicação, não estava previsto o pedido de declaração de ilegalidade com força obrigatória geral, mas apenas a impugnação indireta e incidental pelos lesados, aquando da reação à prática desses atos administrativos.

Com a reforma de 2019, nos termos da alínea b) do nº 3 do artigo 73º, o Ministério Público passou a ter a possibilidade de, a requerimento de qualquer dos titulares da ação popular ou oficiosamente, solicitar a declaração de ilegalidade desse tipo de norma, com força obrigatória geral. Também no âmbito do nº4 do mesmo artigo é consagrado o pedido de declaração de ilegalidade com força obrigatória geral pelo Ministério Público, sendo que nesta hipótese, quando tenha conhecimento de três decisões de desaplicação da norma com fundamento em ilegalidade, já não se trata de uma mera possibilidade, mas de um dever. Podemos assim observar o importante papel do Ministério Público na defesa da legalidade democrática.



[1] O conceito de norma deve ser entendido num sentido amplo, incluindo todas as disposições de direito administrativos com caráter geral e abstrato, que visem a produção de efeitos permanente numa relação intersubjetiva.

[2] Cf. Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa, Almedina, 2020.

[3] Cf. Licínio Lopes e Jorge Alves Correia, O novo regime do CPTA em matéria de impugnação de normas: como transpor a inconstitucionalidade do art. 73º, n.º 2? In Cadernos de justiça administrativa - Nº 114 (Nov.-Dez. 2015).

[4] Cf. Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa, Almedina, 2020.

                                                                                                                                                Inês Pedro

                                                                                                                                                Nº 58631


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