Os poderes de pronúncia do tribunal na ação de condenação à prática do ato devido – uma ameaça ao princípio da separação de poderes?
A ação de condenação à prática do ato devido[1] constituiu uma revolução em sede de Contencioso Administrativo[2]. Vejamos que, ad inicium, seria impensável que o tribunal pudesse dar ordens à Administração Pública.[3] [4] Deu-se, pela primeira vez, aos tribunais, o poder de garantir o dever legal de atuar ao qual a Administração está adstrita.[5]
Surgiram,
pois, algumas inquietações por parte da doutrina e da jurisprudência face a
saber até que ponto é que este tipo de ação administrativa poderá garantir o
nosso tão conhecido e estimado princípio da separação de poderes (Art. 2º, art.
111º e art. 288º al. J) CRP).
Os poderes
de pronúncia do tribunal estão sujeitos a dois limites[6].
Por um lado, o tribunal não pode limitar-se apenas a devolver a questão ao
órgão administrativo. Por outro lado, também não pode determinar o conteúdo do
ato a praticar pela própria Administração. Deste modo, procura-se não só evitar
um tribunal inerte e submisso à Administração mas também colocar um freio a um
possível administrador-juiz[7].
Extraio daqui a seguinte máxima: “à Administração
o que é da Administração; à Jurisdição o que é da Jurisdição.”
Para poder
aferir dos poderes de pronúncia do tribunal, será relevante fazer, a priori,
algumas considerações sobre o tipo de atos que a Administração Pública pode
praticar, mais especificamente, distinguir entre atos de caráter vinculados e atos
de natureza discricionária.[8]
De forma
muito breve, é de referir que quando temos uma lei que indica não só os fins
mas também os meios (isto é, as circunstâncias, o modo de atuar e o conteúdo do
ato) que a Administração deve prosseguir estamos perante um ato legalmente
vinculado[9].
Por outro lado, se temos uma lei que confere à Administração Pública uma
possibilidade de escolha de várias opções para prosseguir um determinado fim de
interesse público, temos um ato de natureza discricionária[10][11].
Quanto ao
primeiro tipo de atos, poderá dizer-se que as “dificuldades” são mais
reduzidas, isto é, quando a Administração está adstrita a praticar um ato
vinculado, não há quaisquer dúvidas sobre o facto de que esta terá de praticar
um ato com aquele conteúdo específico, pelo que o tribunal terá de se pautar na
sua condenação à prática do ato devido. Se isto parece demasiado simples para
ser verdade, é mesmo. A verdade é que tentar encontrar normas totalmente
vinculativas na nossa ordem jurídica revela-se uma tarefa de extrema
dificuldade, visto que em quase todos os poderes da Administração estão
patentes características de discricionariedade.
Situação
diferente será aquela na qual a Administração Pública detém poderes de
discricionariedade, pois aqui o tribunal já terá de densificar, in casu, a que vinculações é que a
Administração está adstrita, qual o alcance dessas mesmas vinculações e a que
meios é que deve olhar na sua decisão[12].
Contudo, e aqui temos um aspeto fundamental, o tribunal não pode nunca determinar
o conteúdo do ato a praticar pelo poder Administrativo.[13]
Ainda assim, será sempre mais arriscado do ponto de vista da própria segurança
jurídica e do princípio da igualdade. Contudo, será este um risco devidamente
ponderado pelo legislador (pelo menos, é isso que é atendível), o qual optou
por esta característica da discricionariedade, por considerar que esta seria a
que melhor asseguraria uma maior justiça e uma melhor adequação da aplicação do
Direito.
Em jeito de
conclusão, restar-me-á apenas referir que, apesar do esforço claramente notável
por parte do nosso legislador, poderá nem sempre estar a salvo o princípio da
separação de poderes. Isto porque, se por um lado os tribunais apenas têm
competência para julgar o cumprimento pela Administração das normas e
princípios que a vinculam, a verdade é que isso só poderá estar totalmente
garantido quando a Administração está adstrita a atos vinculados (que são casos
minoritários nesta nossa animada realidade jurídica). Não esquecendo a
importância da discricionariedade[14],
a verdade é que quanto maior esta for, mais difícil será o controlo judicial
dos atos praticados pela Administração e, consequentemente, mais comprometida
estará a ordem axiológica à qual esta mesma Administração está sujeita. Isto
porque, por outro lado, há casos (maioritários) nos quais o tribunal apenas
poderá “explicitar as vinculações a observar pela Administração na emissão do
ato devido”[15] e
ficará sempre dependente da boa vontade das nossas entidades públicas. Restará,
portanto, ter alguma fé na Boa Administração[16].
BIBLIOGRAFIA:
VASCO PEREIRA DA SILVA, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise
SÉRVULO CORREIA, Direito
do Contencioso Administrativo I
JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I
VIEIRA DE ANDRADE, Lições
de Direito Administrativo
MARCELLO CAETANO, Princípios
Fundamentais do Direito Administrativo
JOÃO CAUPERS, Introdução
ao Direito Administrativo
FERNANDA PAULA OLIVEIRA e JOSÉ EDUARDO FIGUEIREDO
DIAS, Noções Fundamentais de Direito
Administrativo
MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Temas e Problemas de Processo Administrativo
VIEIRA DE ANDRADE,
A Justiça Administrativa. Lições
Mário Esteves de Oliveira e Rodrigues Esteves de
Oliveira, CPTA e ETAF Anotados
JURISPRUDÊNCIA:
Acórdão do Tribunal Constitucional, nº 510/2016,
publicado em Diário da Républica nº 204/2016, Série II de 2016-10-24
Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, 17
de Abril de 2015, processo nº 00533/10.0BEPRT
Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, 1 de
Outubro de 2010, processo nº 00514/08.4BEPNF
Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, 28
de Setembro de 2006, processo nº 00121/04.0BEPRT
SITES:
Temas e Problemas de Processo Administrativo, coordenação
do Prof. Dr. Vasco Pereira da Silva https://www.icjp.pt/sites/default/files/media/ebook_processoadministrativoii_isbn_actualizado_jan2012.pdf
Sofia Carrilho Urbano nº 58386
[1] Vieira de Andrade in Lições de Direito Administrativo - Por ato devido entende-se “aquele que deveria ter sido emitido e não foi, quer por omissão, quer por ato administrativo”. Tal como podemos aferir, este Professor, apresenta um conceito lato de ato devido, considerando que não são atos devidos aqueles que estão vinculados pela lei, mas também atos discricionários que, dadas as circunstâncias, sejam legalmente obrigatórios.
[2] A ação em causa apenas surge em 2002, no CPTA, o qual veio concretizar a revisão constitucional de 1997 que estabelecia a possibilidade de consagração legal das ações de condenação ao ato devido.
[3] O juiz apenas podia invalidar atos administrativos.
[4] Estava subjacente a ideia de uma Administração autoritária, impune e cujos atos não poderiam ser postos em causa.
[5] A Administração não tem qualquer “discricionariedade de silêncio” (Sérvulo Correia in Direito do Contencioso Administrativo I). A ideia é a de que, desde que o particular dirija à AP uma pretensão, tem direito a uma decisão (a qual terá de estar em conformidade com a lei). O princípio da decisão está consagrado no art. 13º CPA.
[6] Art. 71º nº 1 e nº 2 CPTA
[7] Esta preocupação do legislador tem na sua base uma infância difícil do Contencioso Administrativo, a qual foi repleta de traumas, um dos quais o “trauma do administrador-juiz”. Tempos conturbados, nos quais não existiria qualquer distinção entre Administrar e fazer Justiça- visto que a fiscalização da legalidade das condutas administrativas cabia aos superiores hierárquicos do responsável pelas condutas. Vigorava a máxima de que “julgar a Administração é administrar”, a qual emitia uma certidão de inutilidade ao princípio da separação de poderes.
[8] Também podem ser denominadas de normas fechadas e normas abertas, respetivamente.
[9] Marcello Caetano in Princípios Fundamentais do Direito Administrativo refere que “temos uma Administração vinculada quando a lei ou os estatutos regulam as circunstâncias em que o órgão deve exercer o poder que lhe está confiado”.
[10] João Caupers in Introdução ao Direito Administrativo
[11] Fernanda Paula Oliveira e José Eduardo Figueiredo Dias in Noções Fundamentais de Direito Administrativo chamam à atenção para o facto de esta discricionariedade ter limites, explicando que “a Administração está limitada pelo fim definido pela norma e sujeita ao direito (…) devendo naturalmente tomar em consideração os direitos liberdades e garantias dos cidadãos.” Está então a Administração limitada quer externamente (por vínculos impostos pela lei), quer internamente (pelos direitos fundamentais e pelos princípios administrativos).
[12] Mário Aroso de Almeida in Temas e Problemas de Processo Administrativo refere que ao tribunal cabe definir quais as ilegalidades praticadas pela Administração.
[13] Vasco Pereira da Silva in O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise defende que o tribunal poderá, contudo, apresentar sempre a sua visão daquela que seria uma “decisão respeitadora” da lei à qual a Administração está submissa.
[14] Seria quase impossível não atribuir à Administração poderes de discricionariedade. Isto porque o interesse público é mutável e é pouco realista pensar que o legislador poderia prever todas as situações hipotéticas no mundo dos factos. Assim, a própria discricionariedade garante uma ideia de melhor solução do caso concreto, pois a Administração, após aferir dos factos, poderá pautar-se pela decisão que garanta uma ideia de Justiça.
[15]
Mario Aroso de Almeida in Temas e
Problemas de Processo Administrativo
[16] Art. 5º Código do Procedimento Administrativo.
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