PETIÇÃO INICIAL - PÃO E VINHO (SIMULAÇÃO)
Supremo Tribunal Administrativo
Praça do Comércio 744
1100-413 Lisboa
EXMO. SENHOR JUIZ DE DIREITO DA SECÇÃO DE CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
INTIMAÇÃO PARA PROTEÇÃO DE DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS E AÇÃO DE RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
ASSOCIAÇÃO PÃO E VINHO, pessoa coletiva nº 08384720, com sede na Rua da Vindima nº8, freguesia de Santo António, concelho de Lisboa, representada judicialmente por Aylén Arancibia, Bernardo Sá, Isabel Villa De Brito, Tiago Peyroteo, Tomás Alves e Tomás Neves, da FDL & Associados – Sociedade de Advogados, com sede na Rua da Justiça, nº 88, 1º Andar, 1200-285 Lisboavem, ao abrigo do disposto nos artigos 37º e 109º e seguintes do CPTA requerer contra ESTADO PORTUGUÊS, notificando a PRESIDÊNCIA DO CONSELHO DE MINISTROS com sede na Rua Prof Gomes Teixeira, n.º 2, 1399- 022 Lisboa, a presente INTIMAÇÃO PARA PROTECÇÃO DE DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS e AÇÃO DE RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL, o que faz nos termos e com os fundamentos seguintes:
I- De Facto
1.º
No dia 6 de novembro de 2020, a Assembleia da República autoriza o Presidente da República a declarar o estado de emergência, com fundamento na verificação de uma situação de calamidade pública.
2.º
No dia 8 de novembro de 2020, o Governo da República publicou o regulamento de execução do estado de emergência, decretado pelo Presidente da República, que entrou em vigor no dia seguinte, e destinado a vigorar até dia 23 de novembro de 2020.
3.º
Do regulamento supramencionado, resulta do artigo 3.º uma cláusula de proibição de circulação na via pública, que determina o seguinte: «Diariamente, no período compreendido entre as 23:00 h e as 05:00 h, bem como aos sábados e aos domingos no período compreendido entre as 13:00 h e as 05:00 h, os cidadãos só podem circular em espaços e vias públicas, ou em espaços e vias privadas equiparadas a vias públicas, nas seguintes situações:
(…) d) Deslocações a mercearias e supermercados e outros estabelecimentos de venda de produtos alimentares e de higiene, para pessoas e animais;»
4.º
Mais, se fundamenta esta restrição com o seguinte: «Atendendo à evolução da situação epidemiológica, o Presidente da República procedeu à declaração do estado de emergência, com um âmbito muito limitado, de forma proporcional e adequada, tendo efeitos largamente preventivos. Nos termos em que foi decretado, o estado de emergência veio trazer garantias reforçadas de segurança jurídica para as medidas adotadas ou a adotar pelas autoridades competentes para a prevenção e resposta à pandemia da doença COVID -19, em domínios como os da liberdade de deslocação, do controlo do estado de saúde das pessoas, da utilização de meios de prestação de cuidados de saúde do setor privado e social ou cooperativo e da convocação de recursos humanos para reforço da capacidade de rastreio.»
5.º
Entre as exceções elencadas no regulamento supra, encontra-se a possibilidade de ir a mercearias, supermercados e outros estabelecimentos de venda de produtos alimentares e de higiene, bem como deslocações pedonais de curta duração, para efeitos de fruição de momentos ao ar livre, desacompanhadas ou na companhia de membros do mesmo agregado familiar que coabitem, contudo, não se encontra prevista a possibilidade de frequentar estabelecimentos dos setores da restauração e do turismo.
6.º
Esta proibição condena as empresas destes setores ao endividamento, ao despedimento de trabalhadores e até à falência, colocando as respetivas famílias em situação de precariedade económica.
7.º
Segundo os dados mais recentes, 43% de empresas de restauração e turismo vão entrar em insolvência no 3º trimestre de 2020. 19% de alojamentos turísticos irão à falência. 49,000 postos de trabalho na restauração já foram perdidos.
8.º
Desta forma, pretende-se a revogação substitutiva do artigo 3º/1 do regulamento de execução ilegal do estado de emergência, de modo a que não viole flagrantemente o disposto nos artigos 18º, 19º/4, e 61º/1 da Constituição da República Portuguesa destinando-se à tutela urgente de direitos e liberdades fundamentais.
II- De Direito
Da Forma do Processo
9.º
Conforme o disposto no artigo 109º do CPTA, o recurso ao processo de intimação depende do preenchimento dos seguintes requisitos: a urgência na decisão de modo a evitar uma lesão ou inutilização de um direito, liberdade ou garantia, a impossibilidade ou insuficiência do decretamento de uma providencia cautelar para o fim pretendido, a adoção de uma conduta positiva ou negativa por parte da Administração apta para o exercício do direito em causa.
10.º
Estamos perante a impossibilidade do exercício direitos fundamentais dos requerentes, a saber, o direito à livre iniciativa económica por força de um tratamento desproporcional e desigual.
11.º
Direitos fundamentais estes postos em causa, pelo artigo 3º/1 DL nº8/2020 de 8 de novembro que procede à execução do Decreto do Presidente da República nº51-U/2020, de 6 de novembro.
12.º
Pretende-se com esta intimação a condenação do Estado a permitir à requerente e por força dos interesses que acautela, os associados desta possam livremente exercer a sua atividade económica nos setores do turismo e restauração, nos conselhos do território nacional continental referidos no anexo II desse DL, no período diário compreendido entre as 23h00h e as 5h, bem como aos sábados e aos domingos no período compreendido entre as 13h e as 5h, do dia 9/11/2020 a 23/11/2020.
13.º
Apesar de o ideal ser a decorrência de um processo nos trâmites considerados normais, tal situação, é manifestamente urgente em face da iminência da limitação inconstitucional imposta por aquele Decreto-Lei de execução.
14.º
E, caso a requerente não recorresse ao presente processo de intimação, ver-se-ia numa situação insustentável para um Estado de Direito, art.º 2º CRP, na medida em que o art.º 3º/1 DL nº8/2020 de novembro ao excluir certos setores, promoveria a falência de empresas e o despedimento de trabalhadores dos setores incluídos na associação em causa; e, os restaurantes seriam prejudicados na medida em que o exercício da sua atividade, apesar de parcialmente idêntico ao dos supermercados e mercearias – se encontraria vedado.
15.º
A situação em crise não é compatível com o procedimento cautelar previsto nos artigos 268º/4 CRP, 109º/1 última parte e 112º e seguintes do CPTA.
16.º
A necessidade de uma decisão urgente e definitiva sobre o mérito da causa, em tempo útil (até dia 23 de novembro de 2020), é imprescindível para a garantia do direito fundamental da livre iniciativa da atividade económica, da proporcionalidade e igualdade e não consegue ser salvaguardado pelas medidas cautelares em razão do seu caráter “precário e provisório”.
17.º
Em face do exposto, estão preenchidos todos os requisitos para que a presente intimação seja proferida e para que o requerido seja condenado a reconhecer estes direitos fundamentais à requerente e a estender as exceções do artigo 3º/1 DL nº8/2020 ao restaurantes e turismo.
18.º
Quanto ao processo que tem por objeto a responsabilidade civil extracontratual de pessoas coletivas públicas, previsto no artigo 37º/1 alínea k) do CPTA, não tem carácter urgente conforme resulta do artigo 36º/1 a contrariodo mesmo Código.
19.º
Não obstante, e como resulta do artigo 4º/3 do CPTA, com a cumulação deste pedido com um de meio processual urgente, deverá este, menos célere, cingir-se ao estritamente indispensável.
Do Patrocínio Judiciário
20.º
Ao abrigo do artigo 11º/ 1 do CPTA, é obrigatório constituir mandatário nos tribunais administrativos, nos termos previstos no CPC. A intervenção em juízo do advogado depende de um mandato nos termos do artigo 43º CPC (ex viartigo 1º CPTA).
21.º
No artigo 43º CPC a parte atribui ao mandatário poderes para a representar, em todos os actos e termos do processo, à luz do artigo 44º/1 CPC (poderes forenses gerais, cfr. artigo 45º/1 CPC). Mandato esse existente e anexado a esta petição inicial (Anexo I).
Da Personalidade e Capacidade Judiciária
22.º
Nos termos do artigo 8º-A/1 CPTA, a personalidade judiciária consiste na suscetibilidade de se ser parte, ao passo que a capacidade consiste na possibilidade de estar, por si em juízo. O artigo 8º - A/ 2 CPTA, estabelece o critério da coincidência, determinando que tem personalidade judiciária quem possua personalidade jurídica e também que possuirá capacidade judiciária quem tenha capacidade de exercício de direitos.
23.º
Quanto à capacidade jurídica das pessoas coletivas temos que esta é inerente à sua existência enquanto pessoas jurídicas (artigo 67º CC). É uma capacidade específica e a lei refere-se-lhe para o efeito de a limitar (artigo 160º CC).
Assim, a associação tem capacidade judiciária, pelo critério da coincidência (artigo 8º-A/ 2): se tem capacidade de exercício, tem também capacidade judiciária.
24.º
A Associação Pão e Vinho é uma associação sem personalidade jurídica, tendo em conta que são um conjunto organizado de empresários de dois setores de atividade. Apesar de não terem personalidade jurídica, têm personalidade judiciária por extensão, nos termos do artigo 12º alínea b) do CPC ex vi 8º-A/3 CPTA.
Da Competência do Tribunal
25.º
1. Pedido de revogação substitutivo de regulamento executivo
Em razão da jurisdição, o critério para aferir da competência é o da natureza da relação jurídica concreta que subjaz ao litígio, devendo essa assumir natureza administrativa, e o litígio que lhe diz respeito deve situar-se no âmbito do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (de agora em diante ETAF). Na situação descrita os autores formulam pedido de impugnação de decisão governamental, a fim de verem tutelados os seus direitos fundamentais, cabendo os pedidos coligados na previsão do artigo 4º/1 al. a) daquela lei.
26.º
Em razão da matéria, existem regras de distribuição da competência assentes no critério de diferenciação entre as matérias de Direito Administrativo e as matérias de Direito Fiscal. Estando diante de matéria de Direito Administrativo são competentes os Tribunais Administrativos (artigo 44.º ETAF).
27.º
Em razão da hierarquia, o ETAF confia a generalidade das competências em primeiro grau de jurisdição aos Tribunais Administrativos de primeira instância – os Tribunais Administrativos de Círculo. Em todo o caso, o ETAF confia para os tribunais superiores a competência para conhecer em primeiro grau de jurisdição, alguns processos. Neste caso, aplicar-se-á o artigo 24.º /1 al. a), iii), pelo que a ação será intentada diretamente junto do Supremo Tribunal Administrativo, na sua secção de Contencioso Administrativo.
28.º
Em razão do território, não é necessário atender-se aos critérios de repartição das competências presentes nos artigos 16.º e ss. CPTA, uma vez que só existe um e é nesse que a ação deve ser intentada.
29.º
É ainda de referir a possibilidade de recurso ao Tribunal Constitucional, através do chamado recurso de amparo: esta figura traduz-se numa ação destinada à condenação de uma entidade pública em virtude de violação de direitos fundamentais. O princípio da subsidiariedade, neste caso exige que o lesado esgote as vias judiciárias ordinárias antes de recorrer à instância de controlo da constitucionalidade.
30.º
2.Pedido de indemnização por responsabilidade civil extracontratual
Nos termos do artigo 21º/1 do CPTA, numa cumulação de pedidos em que a competência para a apreciação de qualquer um deles pertença a um tribunal superior, este também é competente para conhecer os demais pedidos.
31.º
Como tal, também o Supremo Tribunal Administrativo é competente para apreciar o pedido de responsabilidade civil extracontratual.
32.º
Segundo o Decreto-Lei 325/2003 de 29 de dezembro, no seu artigo 1.º/1, o Supremo Tribunal Administrativos tem sede em Lisboa.
Legitimidade Ativa do Autor
33.º
Quanto ao pedido de revogação substitutiva de regulamento de execução, o autor Associação Pão e Vinho tem legitimidade ativa, ao abrigo do artigo 73º/2 CPTA na medida em que foi diretamente prejudicada pela aplicação da norma que pretende impugnar.
34.º
Quanto ao pedido de indemnização por responsabilidade civil extracontratual de pessoa coletiva pública (leia-se, Estado), este acautela-se pelo regime comum residual do artigo 9.º/1 CPTA, por referência à titularidade da relação material controvertida, tal como configurada pelo autor. A associação quer fazer valer uma situação jurídica pessoal, logo a sua legitimidade processual extrai-se desse mesmo preceito.
Legitimidade Passiva
35.º
A legitimidade processual do réu dever ser aferida ao abrigo do artigo 10º do CPTA. Demonstra-se a existência de uma relação materialmente controvertida entre o autor e o Conselho de Ministros (órgão colegial do Governo).
36.º
A regra geral é que a legitimidade passiva corresponda à pessoa coletiva e não a um órgão que dela faça parte. Por esta lógica, seria o Estado a pessoa demandada.
37.º
Não obstante, Vasco Pereira da Silva entende que este seja um mau princípio dado que existem várias exceções ao mesmo. O artigo 10º/2 tem exceção quanto aos Ministérios e Secretarias Regionais. Mário Aroso de Almeida entende que onde se lê Ministérios podem-se incluir outras realidades como o Conselho de Ministros.
38.º
De modo a não incorrermos em ilegitimidade passiva, apesar da posição doutrinal já mencionada, é demandado a pessoa coletiva Estado.
Interesse Processual
39.º
Interesse processual não se confunde com legitimidade. Existe interesse por haver necessidade efetiva de tutela jurisdicional e porque há uma repercussão direta e imediata da norma na esfera pessoal do autor.
Do Pedido
40.º
Está em causa uma cumulação de pedidos, nos termos dos artigos 4º/1 do CPTA e 555º do CPC, de uma intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias e ação de responsabilidade civil extracontratual.
41.º
É permitida esta cumulação de pedidos nos termos do artigo 4º/1 alínea a), por terem a mesma causa de pedir.
42.º
O objeto do pedido poderá ser um de três com vista à tutela de direitos, liberdades e garantias:
- A condenação da Administração rectius, da entidade que prossiga a função administrativa na emissão de um ato administrativo ou na cessação de efeitos deste;
- A condenação da Administração na adoção de uma conduta material, ou na abstenção de uma determinada conduta material;
- A condenação da Administração na emissão de um regulamento de execução, ou na revogação substitutiva de um regulamento de execução ilegal, de modo a prevenir ou a fazer cessar a violação de um direito, liberdade ou garantia do(s) particular(es).
43.º
Para esta intimação, o objeto será a condenação na revogação substitutiva de um regulamento de execução ilegal, de modo a fazer cessar a violação de um direito, liberdade ou garantia.
Da Intimação Para Proteção de Direitos, Liberdades e Garantias
44.º
Diz-nos o artigo 18.º/2 da CRP: «A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.»
45.º
O estado de emergência corresponde a uma expressa previsão na Constituição da suspensão do exercício de direitos. Nesse sentido, continuam a presidir as regras atinentes à restrição dos direitos, liberdades e garantias e aqui, os princípios da igualdade e da proporcionalidade assumem especial importância e notoriedade. A aplicação destes princípios neste campo, supõe que a suspensão abranja apenas aqueles direitos, liberdades e garantias cujo exercício ponha em causa e em perigo os objetivos do estado de emergência.
46.º
Impõe-se-nos, então, refletir sobre os objetivos do estado de emergência e os perigos que se pretendem evitar, ponderando os interesses relevantes:
47.º
O contexto da contemporaneidade corresponde a uma situação de pandemia vivida atualmente no país e no Mundo e em face disto, é crescente a necessidade de proteção e defesa pelos países e pelos seus cidadãos, de medidas de contenção e de salvaguarda da saúde de cada um e da saúde das pessoas com quem se contacte. A comunidade científica identificou como essencial as pessoas deverem abster-se de assumir comportamentos de risco, evitando o contacto próximo com terceiros, usando máscara e garantindo a higiene respiratória e das mãos.
48.º
A verdade é que, apesar disto, a taxa de letalidade da doença cifra-se em valores muito menos elevados do que aqueles que inicialmente se projetaram quando se tomou a primeira decisão governamental de confinamento obrigatório no mês de março. Desde então, percorremos um longo caminho de combate e investigação da doença, tendo a nossa sociedade sido adaptada à realidade pandémica. Esta adaptação, note-se, afetou primacialmente e a título principal os setores da restauração e turismo. Novas medidas de higiene entraram em vigor para fazer face à contaminação nestes espaços, o que implicou uma redução drástica no número clientes que estes negócios possuem.
49.º
Concluímos então que um dos principais objetivos do Governo da República será o de prevenir o contágio da doença e rastrear na medida do possível, as fontes de contágio, de forma a combater a sua propagação pela população. Tal foi a fundamentação em anteriores resoluções ilegais de restrição de direitos, liberdades e garantias fora do estado de emergência e embora não sejam estas as palavras reproduzidas no preâmbulo do Decreto n.º 8/2020, cremos que lográmos em identificar os principais objetivos das medidas restritivas de direitos.
50.º
Que bens jurídico-constitucionais são colocados em causa em virtude do contexto pandémico vivido? A saúde pública será o bem jurídico mais facilmente identificável. Uma vez que os hospitais não possuem conduções para albergar um número tão elevado de doentes, demonstra-se essencial e comum à causa coletiva, o combate à propagação da doença e a sua contenção. Mas que direitos estão em confronto? Que direitos é que o Decreto n.º 8/2020 suprime?
51.º
Desde logo o princípio da igualdade(artigo 13º e 266.º/2 da CRP) impõe que se trate de modo igual o que é juridicamente igual e de modo diferente o que é juridicamente diferente, na medida da diferença. A própria proibição da discriminação necessita de averiguação, já que se tem de ter em conta o fim visado pela medida administrativa e, depois, isolam-se as categorias que, para realizar tal fim, são objeto de tratamento idêntico ou diferenciado; por fim, questiona-se se, para a realização do fim tido em visto, é ou não razoável, à luz dos valores dominantes do ordenamento, proceder àquela identidade ou distinção de tratamento.
52.º
Já se viu que o fim do regulamento é diminuir o contacto entre as pessoas, de modo a prevenir a propagação da COVID 19. Para tal, não se permitiu a ida a restaurantes para comer, nem para serviço de take-away. Em contraste, permitiu-se a ida a supermercados, mercearias e outros estabelecimentos de venda de produtos alimentares e de higiene. Para se estar perante a violação do princípio da igualdade, as medidas discriminatórias têm de ser materialmente infundadas, ou seja, sem qualquer fundamento razoável ou sem qualquer justificação objetiva e racional.
53.º
Não existe razão para este comportamento discriminatório. Da mesma maneira que é possível um supermercado operar, com um número limitado de pessoas a ocupá-lo de cada vez, com uso de máscara obrigatório e com aplicador de gel desinfetante disponível à entrada, é possível um restaurante funcionar com essas mesmas restrições. O facto de num restaurante tenderem-se a agrupar mais pessoas do que nas idas ao supermercado também não é justificação, pois seria admissível a limitação a idas a restaurantes em grupo se acompanhados por membros do mesmo agregado familiar, um critério também usado no regulamento quanto a passeios pedonais em grupo. Não sendo do mesmo agregado familiar, respeitar-se-iam as diretivas da DGS quanto ao distanciamento mínimo.
54.º
Mais inconcebível ainda será a questão do take-away. Não existe razão para uma mercearia poder ter clientes presenciais, e um restaurante não poder disponibilizar no seu estabelecimento, para recolha pelos consumidores, de pedidos pré-efetuados.
55.º
Para mais, não existem dados nem estudos que comprovem que haja maior risco de contágio neste setor de atividade, e sendo possível este operar com as mesmas restrições dos supermercados e estabelecimentos análogos, não existem justificações para estas medidas discriminatórias que sufocam o mesmo.
56.º
Também, no nosso entendimento, existe uma grosseira desproporcionalidade na aplicação das medidas restritivas de direitos dos cidadãos. O direito à livre iniciativa económica privada foi violado e esgotado do seu conteúdo essencial. Ademais, foram violadas as regras constitucionais reguladoras das restrições respeitantes a direitos, liberdades e garantias.
57.º
Embora os órgãos de soberania possam, segundo o artigo 19º/1, CRP, “acontrario”, suspender o exercício dos direitos, liberdades e garantias durante a vigência do estado de emergência, o artigo 3.º/1 da Lei n.º 44/86,que fixa o regime do estado de sítio e do estado de emergência, impõe que a suspensão ou a restrição de direitos, liberdades e garantias durante o estado de emergência se limite, nomeadamente quanto à sua extensão, à sua duração e aos meios utilizados, ao estritamente necessário ao pronto restabelecimento da normalidade. Não cremos que proibições de circulação e consequentemente de proibição tão ampla de os profissionais e empresários dos setores da restauração e turismo exercerem a sua profissão e proverem ao seu sustento, ao sustento dos trabalhadores e ao sustento das suas famílias se coadune com o estado de coisas.
58.º
O artigo 61.º/1 da CRP garante o reconhecimento da liberdade económica de agentes privados perante o Estado. Este é um direito essencialmente ‘’negativo’’ ou de defesa, na medida em que revestem natureza análoga aos «direitos, liberdades e garantias», logo, beneficiando mutatis mutandido seu regime, o do artigo 17.º da CRP. Assim, a liberdade de iniciativa económica configura-se enquanto direito fundamental e não apenas como um princípio objetivo de organização económica.
59.º
Se é verdade que a restrição visa salvaguardar outro interesse constitucionalmente protegido, também será verdade que essa restrição se deve cingir à medida necessáriapara alcançar esse objetivo e a restrição não pode aniquilar o conteúdo essencial do direito, mesmo que esse direito seja suscetível de limitações. Assim, o princípio da proporcionalidade (também conhecido como proibição do excesso), toma especial relevância – como notámos acima – na mediação e ponderação dos interesses relevantes, nas suas 3 vertentes: adequação, necessidade e racionalidade. O artigo 19.º/4 assim o impõe, assim como o artigo 18.º/2 da CRP.
60.º
Não se nos afigura proporcional que os setores da restauração e do turismo, que têm sido gravemente afetados desde o início da pandemia, tendo de se adaptar a exigências bastante estritas nos seus estabelecimentos, devam ser desigualmente afetados em relação a outros setores de atividade económica, privada ou pública, não lhes sendo possível prover ao sustento das suas famílias, de pagar os salários aos trabalhadores e de se verem impedidos de operar os próprios estabelecimentos. Quando têm a permissão de os operar, já sofrem mais que quase todos os restantes setores económicos. Não está cientificamente provado que é nestes locais que existe maior suscetibilidade de ser contagiado com a doença. Ademais, nem a faculdade de venderem os seus produtos em take-away nesses horários foi permitida a estes setores de atividade. Simplesmente viram-se vedados – novamente – da possibilidade de disporem dos seus produtos e livremente desenvolver os seus negócios. O Estado esvaziou-lhes esse direito sem qualquer justificação e fundamentação válidas. Dezenas de milhares de pessoas viajam diariamente no metro e comboio, onde, devido ao espaço e capacidade destes meios de transporte, existirá um risco muito maior de contaminação quando se circula dentro deste. Esta desigualdade e desproporcionalidade constitui o fundamento do nosso pedido.
61.º
Este Decreto constitui um alerta para TODOS os cidadãos portugueses que têm visto o Governo da Nação a adotar medidas restritivas de direitos fundamentais sem base legal e/ou constitucional, para além de (mesmo no Estado de Emergência) atropelarem tais direitos pela sua grosseira desproporcionalidade.
62.º
É o que neste momento vem sucedendo, à sombra do «Estado de Emergência», mas com grave abuso da proporcionalidade, entre outros: com encerramento de algumas atividades económicas, condenando-as à ruína.
63.º
A conquista da democracia e dos direitos fundamentais foi o resultado de uma luta de décadas e mesmo de séculos da maioria dos povos e Estados do mundo, sendo um bem precioso, que se não deve deixar perder à «boleia» da Pandemia nuns quantos meses de 2020.
Da Responsabilidade Civil Extracontratual
64.º
Os autores pedem, em sede de petição inicial, uma indemnização pelos prejuízos decorrentes da ausência de negócio na área da restauração e do turismo a título de responsabilidade civil extracontratual.
Estamos perante uma exigência legal e constitucional, presente nos artigos 22º e 271º da CRP e compete aos Tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas à “Responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, agentes, trabalhadores e demais serviços públicos, incluindo ações de regresso” (artigo 4º nº1 alínea g) do ETAF).
65.º
Tem, neste âmbito, aplicação a Lei n.º 67/2007 de 31 de dezembro, relativa à Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas (adiante designado por RCEEP). Por conseguinte, a conceção geral subjacente ao ETAF é a de que os tribunais administrativos serão competentes para julgar litígios resultantes de responsabilidade civil aos quais seja aplicável a lei 67/2007 de 31 de dezembro.
66.º
Assim, será necessário recolher neste regime o critério que leva a que estas entidades possam estar sujeitas ao regime da responsabilidade pública, tendo por consequência a sua sujeição à jurisdição dos tribunais administrativos. De acordo com a nossa Constituição, o Estado Português e as entidades públicas são responsáveis pelos danos que causam no exercício das suas funções.
67.º
Recorrendo ao âmbito material (artigo 1.º RCEEP), esta aplica-se em caso de responsabilidade civil extracontratual recorrente dos atos das funções administrativa, legislativa e judicial. Já nos termos do n.º 2, quanto ao âmbito subjetivo, temos de atender aos danos decorrentes do exercício da função administrativa, ou seja, às ações e omissões adotadas no exercício de prerrogativas de poder público ou reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo.
68.º
No artigo 22º da CRP não encontramos nenhuma diferenciação das funções do Estado. Porém, encontramos essa diferenciação na Lei nº 67/2007, visto que consagra diferentes regimes para cada função do Estado. Dentro da função administrativa, temos a responsabilidade por factos ilícitos (artigo 7º a 10º RCEEP).
69.º
Para que se possa efetivar a responsabilidade civil extracontratual, nos termos da referida lei têm de estar preenchidos os 5 pressupostos da responsabilidade civil: facto voluntário, ilicitude, dano, culpa e nexo de causalidade entre o facto e o dano.
70.º
Facto voluntário – que se pode traduzir tanto numa ação (facto positivo) ou numa omissão (facto negativo). A voluntariedade significa que o facto em causa tem de ser objetivamente controlável e determinado pela vontade do autor, como foi aqui a ação do Governo.
71.º
O artigo 9º nº1 do RCEEP refere que se consideram ilícitas as ações dos titulares de órgãos que violem disposições ou princípios constitucionais, legais ou regulamentos ou infrinjam regras de ordem técnica ou deveres subjetivos de cuidado e de que resulte a ofenda de direitos e interesses legalmente protegidos.
72.º
Conforme o artigo 9.º, alínea d) da CRP, o Estado tem a tarefa fundamental de «promover o bem-estar e a qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os portugueses, bem como a efetivação dos direitos económicos, sociais, culturais e ambientais, mediante a transformação e a modernização das estruturas económicas e sociais».
73.º
Conforme o artigo 13.º da CRP todos os cidadãos são iguais perante a lei.
74.º
Conforme o artigo 61.º da CRP a iniciativa económica privada exerce-se livremente.
75.º
Conforme o artigo 62.º da CRP a todos é garantido o direito à propriedade privada.
76.º
O artigo 10.º/2 do RRCEEEP presume culpa leve na ocorrência de prática de atos jurídicos ilícitos, sem prejuízo da demonstração de dolo ou culpa grave.
77.º
O dolo traduz-se na intenção existente na realização do facto ilícito e danoso; e a culpa grave na diligência e zelo manifestamente inferiores aos exigidos para o exercício das funções em causa.
78.º
O facto ilícito praticado no exercício das funções administrativas tem de causar prejuízos a particulares para estes poderem ser indemnizados. Neste caso os danos patrimoniais reconduzir-se-ão a lucros cessantes pela frustração da utilidade que os autores iriam adquirir não fosse o ilícito. A estes danos acrescentam-se ainda os danos não patrimoniais dado a ansiedade e sofrimento pela qual passaram os autores ao não poderem exercer o seu trabalho.
79.º
Existe um nexo de causalidade entre o facto e o dano causado, tendo por base a teoria da causalidade adequada, pois para além de o facto ter sido em concreto causa do dano, também em abstrato foi adequado a produzi-lo, segundo o curso normal das coisas. A averiguação da adequação abstrata do facto a produzir o dano, realizada a posteriori, através da avaliação de se seria previsível que a prática daquele facto originasse aquele dano (prognose póstuma), confirma que existe este nexo.
Em suma,
Esta ação baseia-se nos seguintes pedidos:
1. Condenação à revogação substitutiva do regulamento;
2. Pedido indemnizatório decorrente dos prejuízos sofridos.
III- Do Valor da Causa
80.º
Nos termos do artigo 306º do CPC, exvi31º/4 do CPTA, cabe ao juiz fixar o valor da causa.
81.º
Tendo em conta que são cumulados dois pedidos, o valor da causa será a soma do valor destes, considerados separadamente, nos termos do artigo 32º/7 do CPTA.
82.º
Quando o valor da causa seja indeterminável, considera-se o valor superior ao da alçada do Tribunal Central Administrativo.
83.º
A determinação do valor da alçada do TCA é feita nos termos do artigo 6º/4 do ETAF. Corresponde ao valor da alçada fixada para os tribunais da Relação. Aos tribunais da Relação atribui-se um valor de 30,000,00€ resultante do disposto no artigo 44º/1 da Lei da Organização do Sistema Judiciário.
84.º
O valor da causa será de 30,000,01€.
IV- Dos anexos
1. Procuração forense (Anexo I)
V- Documento Único de Cobrança (DUC)
Referência de DUC Nº: 85327.AYITTT.388
PROCURAÇÃO FORENSE
ASSOCIAÇÃO MOVIMENTO PÃO E VINHO, pessoa coletiva nº 08384720, com sede na Rua da Vindima nº8, freguesia de Santo António, concelho de Lisboa, representada por João Pão,
Constitui como seus procuradores, os Drs. AYLÉN ARANCIBIA, natural da freguesia de Algueirão Mem-Martins, titular do Cartão de Cidadão n.º 08456374, emitido pela República Portuguesa e válido até 23-11-2026, com cédula profissional da Ordem dos Advogados Portuguesa 00000P; BERNARDO SÁ, natural da freguesia de Palmela, titular do Cartão de Cidadão n.º 04536453, emitido pela República Portuguesa e válido até 06-06-2025, com cédula profissional da Ordem dos Advogados Portuguesa 00001P; ISABEL VILLA DE BRITO, natural da freguesia de São Sebastião da Pedreira, titular do Cartão de Cidadão n.º 07483493, emitido pela República Portuguesa e válido até 03-05-2023, com cédula profissional da Ordem dos Advogados Portuguesa 00002P; TIAGO PEYROTEO, natural da Região Administrativa Especial de Macau, titular do Cartão de Cidadão n.º 08782578, emitido pela República Portuguesa e válido até 24-01-2028, com cédula profissional da Ordem dos Advogados Portuguesa 00003P; TOMÁS ALVES, natural da freguesia de São Nicolau, titular do Cartão de Cidadão n.º 073927564, emitido pela República Portuguesa e válido até 10-02-2028, com cédula profissional da Ordem dos Advogados Portuguesa 00004P; TOMÁS NEVES, natural da freguesia de São Sebastião, titular do Cartão de Cidadão n.º 01739462, emitido pela República Portuguesa e válido até 04-09-2023, com cédula profissional da Ordem dos Advogados Portuguesa 00005P, a quem confere os mais amplos poderes forenses gerais e ainda os poderes especiais de confessar, desistir ou transigir.
Lisboa, 24 de Novembro de 2020
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